sábado, 5 de fevereiro de 2022

História do Cinema em Portugal - O "Fundo do Cinema" - A Censura e o Mercado




1. A aplicação dos dinheiros do Fundo do Cinema era informação que não chegava com facilidade ao conhecimento público. Não existindo uma perfeita regulamentação (e em certos casos não havia regulamentação nenhuma), os dinheiros distribuíam-se com uma folgada arbitrariedade. Assim, nunca se determinou uma verba (regular ou em função de percentagem sobre as receitas do Fundo) para a Cinemateca Nacional. Depois do 25 de Abril de 1974, foi possível a uma revista que se publicou em Lisboa («Revista do Povo», n.º 13, de 1-12-75) dar a lume extractos de um Relatório do ano de 1958, com a chancela da Presidência do Conselho e do Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo, que trata do discutido «Fundo do Cinema Nacional» e presta contas relativas àquele ano. Por aí se vê um significativo movimento das disponibilidades desse Fundo.

Por esse Relatório fica-se a saber que o activo em 1958 foi o seguinte:


Saldo do ano de 1957  ... ... ... ... ... ...
6 064 921$00
Cobrança de licenças e juros  ... ... ... ...
5 101 768$60
Exibição de filmes pertencentes ao Fundo
1 807$50

O passivo, desse mesmo ano, reparte-se da seguinte maneira:

Subsídios, bolsas de estudo, filmoteca,

biblioteca, instalações e
gratificações
aos  membros  do  Conselho  do
Cinema.
2 195 968$20
Transferências para o SNI, para filmes
turísticos e outros  ... ...
... ... ...1 945 700$00
Transferência de juros ... ...
...27 947$90
Saldo para o ano seguinte ...
... ... ...7 018 881$00

――――――――

11 168 497$10

Como desde logo salta à vista, perto de dois mil contos vão para o SNI «para filmes turísticos e outros», sem ficarmos a saber quais nem por quem realizados. Mas se analisarmos o desdobramento da verba «subsídios, bolsas, filmoteca, etc.», verifica-se, por exemplo, que enquanto à filmoteca foi cedida uma modesta importância de 203 308$80, gastaram-se nos «jornais de actualidades» Imagens de Portugal perto de mil contos (exactamente 948 867$00). Por seu turno, o filme de Baptista Rosa, Azulejos de Portugal, recebeu um subsídio de 135 000$00, e o Centro Universitário de Cinema, para o Estúdio de Cinema Experimental da Mocidade Portuguesa, foi dotado com 50 contos.

Curioso é também outro pormenor: para certos filmes era superiormente autorizado um empréstimo reembolsável, através da Caixa Geral de Depósitos, ficando o Fundo do Cinema como fiador. Foi o caso de Chaimite, de Brum do Canto, de O Cerro dos Enforcados, de Fernando Garcia e Domingos de Mascarenhas, de Frei Luís de Sousa, de Lopes Ribeiro, de A garça e a serpente, de Artur Duarte, de Milagre de Fátima, de Gentil Marques. Ora, não tendo os produtores cumprido a obrigação de liquidar esses empréstimos, a Caixa Geral de Depósitos foi reembolsada com os dinheiros do Fundo do Cinema. Assim ― e como exemplo ― dos 850 contos «emprestados» para o Cerro dos Enforcados, Domingos de Mascarenhas (o produtor) só amortizou 28 contos. Também por falta de pagamento das amortizações de empréstimos à Lisboa-Filme, para a produção dos filmes O Noivo das Caldas, Perdeu-se um Marido e Dois Dias no Paraíso, teve o Fundo de desembolsar 1 098 902$90.

O mal não está em o Estado financiar totalmente a produção de filmes. Tivessem eles dignidade artística; representassem eles alguma coisa no desenvolvimento e na caracterização da nossa cinematografia; estivessem eles, temática e formalmente, à altura de poderem exercer a função sociocultural que ao cinema incumbe levar a cabo, e das nossas realidades, dos nossos problemas e da nossa psicologia serem o reflexo. O mal está no facto de tão mal se terem aplicado os dinheiros do Fundo do Cinema, na maior parte dos casos,... ajudando-se, também, a criar a ilusão de haver cinema português onde apenas havia algumas fitas feitas em Portugal por gente portuguesa. E dentre essa gente ― deve ser dito ― técnicos houve (como ainda continua a haver) muito competentes, sobretudo operadores de câmara, fazendo «milagres» com os meios mais rudimentares. Os realizadores, porém, na generalidade, não davam provas de imaginação criadora e aceitavam a acção castradora da censura voltando-se para projectos que a aliciavam ou com ela procuravam não ter problemas, contribuindo para a alienação do público com a desculpa de o divertir.


2. Os critérios adoptados para a aprovação de subsídios e outras formas de ajuda financeira coordenavam-se com os critérios gerais da Censura. Com nefastas consequências. A degradação do gosto do público ― apesar da acção dos cineclubes, limitada por toda a espécie de coacções ―, a habituação a um certo tipo de cinema ― pela falta de contacto com outras cinematografias e outros géneros de filmes ―, a crescente «colonização» pelo cinema americano, com múltiplos recursos para uma profunda penetração ― resultam, em grande medida, da acção opressiva, inibidora, desinformadora, cavernícola e rigorosamente vigilante da Censura. Bastará dizer que, na década de sessenta, foram proibidos ― por razões de ordem política, moral, social, religiosa, sexual, militar, etc. ― cerca de 300 filmes, embora adquiridos pelas Distribuidoras dentro das suas cautelas habituais. Alguns desses filmes, considerados impróprios para o público português (posteriormente «libertados», com cortes, no tempo de Marcelo Caetano) foram: Hiroshima mon amour, Une femme mariée, Lilith, Vaghe stella dell’Orsa, Le journal d’une femme de chambre, Kiss me stupid, Jules et Jim, The Servant, L’aventura, Rebel without a cause, Never on Sunday, The Graduate.
Mas quem eram os censores? Numa exposição dirigida ao Ministro da Presidência, em 1961, pelos empresários portugueses, podia ler-se: «(...) A censura aos espectáculos só pode ser exercida por individualidades de sólida cultura geral e elevada formação humanística, para que não sofram as dificuldades que pesam sobre funcionários dependentes duma disciplina inadequada para a função de censores. (...) À margem do desolador balanço de 38 filmes proibidos, 5 suspensos e 192 com cortes, no curto prazo de onze meses, podem exemplificar-se decisões verdadeiramente caricatas, outras de lamentável intervenção, algumas ainda testemunhando ausência completa de altura para a exigência da missão. (...) A Comissão de Exame e Classificação de Espectáculos actua mal, com prepotência, sem uniformidade de critério, com desconhecimento da evolução da cultura, do pensamento e do nível intelectual da população que frequenta os espectáculos. (...) Não pode continuar a ser constituída por funcionários que nunca tiveram quaisquer contactos com os problemas sociais, filosóficos e artísticos inerentes ao Teatro e ao Cinema.» Assina a exposição José Coelho da Silva Gil que, pelas suas relações profissionais com eles, conhecia os censores de ginjeira.


3. Quanto ao papel dos Exibidores e Distribuidores na evolução da crise do filme nacional e na alienação ou manipulação do público, o problema é demasiado vasto e complexo para se arrumar em meia dúzia de parágrafos. Sobre estes assuntos, complicados com os jogos monopolistas da importação e distribuição de filmes, remeto os leitores para o recente livro de Eduardo Geada («O Fascismo no Cinema») que fornece uma panorâmica (em alguns pontos discutível) dos múltiplos aspectos políticos, comerciais e culturais da questão. Pessoalmente, no que concerne a Exibição (sobretudo a Exibição independente da Distribuição) penso que são de evitar conclusões precipitadas, na medida em que certos factos reclamam, antes de mais nada, um estudo sociológico e apontam para a necessidade de medidas de compensação que não cabem a entidades comerciais privadas mas compete ao Estado tomar através de organismos verdadeiramente interessados numa vasta política cultural.

Dá que pensar quando um exibidor decide programar, sem entusiasmo e à experiência, o «seu» primeiro filme indiano (caso de Bobby, no «Coliseu do Porto», ocorrido em 1976) e a fita se mantém inesperadamente no cartaz oito semanas a fio, esgotando frequentemente lotações de 2660 lugares (inclusive no sábado e domingo da 8.ª e última semana). O próprio público, logicamente, tenta o exibidor a projectar no seu cinema mais três ou quatro desses folhetins cor-de-rosa e musicais, uma vez que os espectadores lhe entram a rodos pela porta dentro (24 413 espectadores na 1.ª semana de Bobby e baixa lenta de frequência até ao fim da 8.ª semana). Valia a pena fazer um estudo exaustivo e comparado da frequência (número de espectadores por espectáculo) a determinados tipos de filmes, relacionando-a com o número de lugares, localização e preços dos cinemas em que foram exibidos e com a época (momento histórico) em que passaram. Estudo que devia ter ainda em atenção o que certos filmes rendem para o Instituto Português de Cinema, rendimento que, em grande parte, reverte para a produção nacional. E que devia, também, reverter para a protecção e expansão do filme de qualidade. Tudo isto, porém, não é assunto que possa aqui ser tratado.

4. Portugal era, e continua a sê-lo, dos países com menos cinemas, sobretudo fora dos grandes centros urbanos, o que se repercutiu na expansão e exploração do filme nacional. À falta de salas juntou-se a absorção de muitas delas pelos mais poderosos Distribuidores, para escoamento directo da sua programação ― vedando essas salas a filmes de distribuição alheia, numa luta expansionista pelo controlo do mercado. A situação agravou-se ainda mais com a promulgação de algumas leis «pitorescas», como a que obrigava os novos cinemas a funcionar como Cine-Teatros, em imóvel independente. Era permitido instalar uma garagem, com depósito de gasolina e óleos, nos baixos de um prédio de habitação, mas não era permitido instalar lá um cinema, «por razões de segurança»... Os novos cinemas deviam poder utilizar-se para espectáculos teatrais, o que requeria mais terreno, para palco, camarins, sanitários, arrecadações, e encarecia consideravelmente a construção. Considerava-se isso como medida de protecção ao Teatro... Mas nem por isso as Companhias teatrais, tradicionalmente enraizadas na Capital, se deslocaram mais vezes à província. E muitos projectos de novos cinemas deixaram de ir avante.

Outra particularidade da nossa legislação era a que regulamentava a importação e exibição de filmes em 16 milímetros. Entre outras coisas, era proibido aos cinemas equipados com projectores para 35 milímetros exibir filmes em formato reduzido (a pretexto de combater a concorrência). Novos cinemas equipados exclusivamente para o 16 milímetros, só poderiam abrir-se a mais de três quilómetros doutro cinema equipado para 35 milímetros! Resultado: tantos eram as complicações para utilizar comercialmente filmes em 16 milímetros, que o mesmo era proibi-los em salas de espectáculos públicos. Isto desencorajou os Distribuidores, que se desinteressaram da importação de filmes em 16 milímetros, não obstante mais do que um ter tentado, a seu tempo, assegurar o exclusivo de importação e exibição de filmes nesse formato... Só muito recentemente (há muito poucos anos) essas várias e «originais» disposições foram postas de parte. Mas tiveram uma influência negativa que ainda não foi compensada.


Informação retirada de Breve História do Cinema Português (1896-1962) de Alves Costa

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