1. A melhor época da comédia cinematográfica portuguesa foi aquela em que as histórias dos filmes se passavam nos bairros lisboetas. «De facto, escreve Luís de Pina (Boletim n.º 2 do I.P.C.), se repararmos bem nesses filmes, abrangendo uma época que vai de 1933, ano de A Canção de Lisboa até O Leão da Estrela (1946), que marca o fim de uma produção bem caracterizada, surge-nos a fita de Cottinelli Telmo rodada sobretudo entre o Castelo e o Campo de Santana, com passeios a Sintra e ao Jardim Zoológico, O Pai Tirano (1941) feito entre o Chiado, Santa Catarina e a Lapa, O Costa do Castelo (1943) no bairro que dá o título ao filme, A Menina da Rádio (1944) e O Leão da Estrela (1946) dirigidos por Artur Duarte neste bairro. E se acrescentarmos a tais comédias outros filmes como Madragoa (1952) e Rosa de Alfama (1953), concluiremos facilmente que durante muitos anos o cinema português foi um cinema de bairro, um cinema que reflectia, com indiscutível cor local, o pequeno mundo bem definido entre os limites da divisão geográfica, humana e administrativa que tem esse nome. Mas em tal redução dos filmes aos microcosmos chamados bairros (...) há pormenores que não deixam de ser curiosos, porque, ultrapassando essa ideia, acabam por se acantonar numa determinada zona urbana.»
«Referimo-nos, por exemplo», continua Luís de Pina, «ao pátio lisboeta, onde decorre a acção de dois filmes, bem diferentes no tempo e na intenção mas que reflectem a pitoresca realidade humana contida naquele espaço, geralmente admirável do ponto de vista arquitectónico mas nem sempre revelador das mínimas exigências de vida. O Pátio das Cantigas (realizado por Francisco Ribeiro em 1942), primeiro desses filmes, reflecte bem a existência quotidiana de um pátio lisboeta, um pátio onde se ama, se trabalha, e se canta, dentro de uma perspectiva optimista, pacata, modesta: pobrete mas alegrete. Gente boa, honrada, do povo, fornece a galeria humana da história, onde as tristezas são um momento e as agruras da vida não fazem parte dessa história. (...) No outro filme, Dom Roberto (1962), vinte anos depois, o pátio sombrio de Alcântara não é já o pátio das cantigas, o pátio da dificuldade. Morrem ali as ilusões e trata-se de subsistir, mas nem assim o povo pobre deixa de ter esperança (... ) E até os fantoches de rua, na barraca do Dom Roberto, são uma porta de escape para outros mundos, para uma pequena alegria quotidiana.»
Este filme: Dom Roberto, realizado por José Ernesto de Sousa, surge do movimento cineclubista, no meio da indigência em que resvalava o cinema comercial português, como tentativa de nova aproximação, de uma realidade urbana (a geografia humana de um bairro lisboeta) vista agora segundo uma óptica diferente. Com um sopro de poesia amarga, que não existia nos «filmes de bairro» dos anos 30-40, há em Dom Roberto reminiscências de Charlot e dos primeiros tempos do neo-realismo italiano, temperadas por um misto de conformismo, de tristeza e de esperança que adoça os contornos de uma anedota que só cautelosamente (e estará aí, talvez, o efeito de uma auto-censura) aflora criticamente uma situação social. O filme parte de um conto de Leão Penedo e acaba numa citação de Tempos Modernos, de Chaplin. Nos prolongamentos marginais, adicionados à única situação do conto, faltou a imaginação de um Zavattini. Talvez por isso, não conseguiu Ernesto de Sousa evitar «tempos mortos» numa narrativa que se alonga mais do que evolui e cujos acrescentos não são suficientemente enriquecedores. Por outro lado, à falta de uma intensa vivência interior dos personagens centrais, ficaram eles limitados àquela situação de uma conformada melancolia. Apesar de tudo, esses personagens (encarnados com muita e inteligente contenção por Glicínia Quartin e Raul Solnado) são tocados por um bafejo de humanidade e de lirismo (muito português) que os distingue dos títeres empalhados de tanta outra fita nacional.
José Ernesto de Sousa, homem culto, crítico e ensaísta cinematográfico, dirigente do cineclube «Imagem», com uma importante intervenção no movimento cineclubista português nos anos 40-50, não voltaria à realização de filmes, embora alimentasse por algum tempo outros projectos que não chegou a levar por diante. Foi também redactor principal e coordenador da revista «Imagem» (2.ª série) que se publicou em 1954, sob a direcção de Baptista Rosa e que teve como colaboradores, entre outros, José-Augusto França, Júlio Sacadura, José Francisco Rebelo, Manuel Pina, Mário Bonito e Manuel Ruas. Era uma excelente revista e aparecera num momento em que a imprensa cinematográfica estava muito apagada.
2. As publicações cinematográficas portuguesas estão muito relacionadas com determinados períodos da história do cinema em Portugal. «Cine-Revista», «Porto Cinematográfico» e «Invicta-Cine» surgem com a enorme atracção do espectáculo cinematográfico e a «era de ouro» do cinema mudo português. O «Cinéfilo», «Kino», a primeira «Imagem», «Movimento» e, um pouco mais tarde, «Animatógrafo», aparecem na transição para o sonoro e na época da criação da «Tobis Portuguesa» e das tentativas de produção contínua. A nova revista «Imagem» (2.ª série), os «Cadernos do Cine-Clube do Porto» e «Visor», no período heróico do cineclubismo.
«Movimento» (1933-34) fundada no Porto por Armando Vieira Pinto, tinha características que a diferenciavam sensivelmente de todas as outras, quer pelo aspecto gráfico quer pelo conteúdo. Nela colaboravam, entre outros, Adolfo Casais Monteiro, José Régio, Alberto de Serpa, Alves Costa, Alexandre de Médicis, Manuel de Oliveira e o pintor Carlos Carneiro. A revista «Animatógrafo», fundada por António Lopes Ribeiro, teve várias fases (1933 e 1940-42), ocupando-se principalmente da promoção do cinema nacional. Nos números da 3.ª série apresentava uma novidade: duas secções constituídas por textos clássicos de alguns teóricos do cinema e excelentes artigos sobre matéria cinematográfica recortados da imprensa estrangeira.
Entre o desaparecimento de «Animatógrafo» e a 1.ª série da segunda revista «Imagem» (1950), apareceu, em 1946, a «Sétima Arte» (com colaboração de Manuel de Azevedo, Joel Serrão, Alves Costa e Júlio Gesta) e a revista «Cinema» (1946/47). Esta revista, onde pontificavam Manuel Moutinho, João Mendes, Armindo Blanco e Domingos de Mascarenhas, defendia (pela pena destes dois últimos) o tão discutido decreto que criou o «Fundo do Cinema». O n.º 16 tem particular interesse porque dá grande relevo à intervenção de Manuel Múrias na Assembleia Nacional, que pedia a imediata aprovação, sem emendas, daquele decreto (como era óbvio...), e insere algumas passagens das intervenções do prof. Mendes Correia que, isolado no hemiciclo, propunha algumas (e não muito ousadas) emendas.
No ano de 1951 aparece a revista «Plateia». Sofrerá pausas e transformações. Optando finalmente por um género próximo do magazine ilustrado consegue chegar aos nossos dias, publicando-se com pendular regularidade. A revista «Imagem» (2.ª série), que reinicia a sua publicação em 1954, não durará muito tempo, deixando uma lacuna que não voltou a ser preenchida.
3. Antes do aparecimento de Dom Roberto, e no mesmo ano em que Manuel de Oliveira realizou O Pão e de tudo houve na produção nacional (desde O Passarinho da Ribeira, de Augusto Fraga, O Primo Basílio, de Lopes Ribeiro, até A Luz vem do Alto, de Henrique Campos e A Costureirinha da Sé, de Guimarães), foi produzido o primeiro filme português em cinemascope: Rapsódia Portuguesa, realizado com grandes meios por João Mendes, filme-cartaz que é típico exemplo, em ponto grande, do documentarismo de bilhete postal que se fazia neste país. «Muito bonito», muito cantado e «muito folclórico», este filme (que reflecte a mentalidade dominante no SNI) não
é mais do que moeda falsa (porque falsa é a imagem que dá do povo português) feita com materiais preciosos (esta terra e este povo que nós somos).
Para retratar um povo (o povo), os seus costumes, sua cultura, as suas dores e as suas alegrias, e necessário conhecê-lo, compreendê- lo e amá-lo. Não basta pousar aqui e ali o olhar frio da objectiva, compor um quadro, colar umas imagens de epidémico folclore sobre as belas paisagens da terra portuguesa. Andaram os autores da fita (e insisto nela porque é um caso exemplar) do Minho ao Algarve, da beira-mar para o alto da serra, para quase tudo falsearem no desejo de tudo tornarem «mais bonito» e «mais pitoresco»... até os trajes e os cantares, que bem dispensam uns os arrebiques, outros os arranjos. Mas que sabiam eles deste povo, da sua vida, do seu trabalho, do seu esforço (e tantas vezes da sua conformada miséria), dos seus costumes, dos seus trajes, dos seus cantares?...
Os ridículos simulacros da apanha do sargaço (já experimentou o realizador o peso de um redelho cheio de algas e a temperatura da água no mar da Apúlia?) e da ida para a romaria; a apressada vista de olhos pelas searas do Alentejo e pelos arrozais, até parecendo que é uma festa a vida que lá se vive; o chocho simulacro do drama dos pescadores da Nazaré, copiadinho sem jeito de Maria do Mar; o quadro folclórico de revista que montaram nos vinhedos do Alto Douro, dão bem a medida da incapacidade dos autores de Rapsódia Portuguesa para (como disseram) darem do povo português a imagem... A imagem autêntica, nas suas alegrias e nas suas agruras, imagem real e sem disfarces. Com mais molho ou menos molho, foi assim grande parte do documentarismo português de bilhete postal ou de «quadros vivos», quase sempre com grande palavreado pleonástico e massacrante, que se fez em Portugal até aos anos sessenta. Por isso, saltou logo à vista (não falando já dos filmes de Manuel de Oliveira, que é coisa à parte) a curta metragem de Fernando Lopes: As Pedras e o Tempo, que ficou como sinal, também, da viragem que iria dar-se três anos mais tarde. As Pedras e o Tempo data de 1961. O outro sinal seria dado por Dom Roberto.
4. Fez-se muito barulho à volta de Dom Roberto. O próprio autor veio lutar em defesa do seu filme. Apelou para o apoio dos cineclubes, dos intelectuais, da imprensa, dos amigos. Não se conseguiu, no entanto, (com o que folgaram os inimigos de Ernesto de Sousa) a adesão do público, que já dera mostras evidentes de desinteresse pelos filmes portugueses. Mas, de qualquer modo, Dom Roberto viria a ser apontado como filme-charneira entre um cinema comercial, anódino, trôpego, com mais caspa do que miolos, parente próximo da foto-novela e da farsa torpe, e um outro cinema que viria a chamar-se novo só porque era diferente e digno, mais ambicioso e independente.
É talvez aribitrário considerar Dom Roberto o filme-charneira. O certo é que, a partir dali, a história do cinema português seria outra. Aceitemos que Dom Roberto foi uma página que se voltou. Voltar-se-ia mesmo sem ele. Mas serve de ponto final de uma época ou de ponto de partida para outra.
* Se o cinema dos anos 40/60 foi, nas suas variantes, alegremente descuidado, histórico, melodramático, cor-de-rosa, toureiro ou fadista (com as excepções confirmadoras da regra), o cinema digno de tal nome que, felizmente, passamos a ter, seria triste, introvertido, angustiado, mais pessoal de que «de autor», na procura da expressão real da nossa realidade contemporânea. Esqueceram- se os novos cineastas que estavam a falar para alguém e que era preciso que esse alguém viesse escutá- los. Não veio. Mas talvez viesse se eles tivessem sabido ― ou lhes estivesse no peito ― vergastar pela ironia, criticar pela troça, demolir divertindo. E como o público com hábitos adquiridos e gostos estereotipados, ia mais em historietas e em cantigas (no duplo sentido da expressão) do que naquilo que lhe avivava as próprias angústias, também esse novo cinema não teve audiência que se visse, tornando difícil, deficitária e marginalizada a vida de cada filme que se propunha reflectir situações reais num momento concreto do mundo e do tempo em que vivíamos.
NOTA
1 Manuel de Azevedo ― in «Perspectiva do Cinema Português».
2 Eram seus sócios, com quotas que variavam entre 20, 10 e 5 contos, José Augusto Dias, Alfredo Nunes de Matos, Jorge Nunes de Matos, António Eduardo Gama, António F. dos Santos Graça, José de Almeida Cunha, Alfredo Correia do Vele, Manuel M. Ramos Guimarães, Manuel da Silva Cruz, António Marini Pinto, António Maria Tavares Júnior, Júlio Fernandes Bastos, Francisco Nunes de Matos, Diogo Teixeira Marinho, Francisco Pereira Balga, António Ribeiro da Costa e Almeida, Delmino Aníbal de Lima, Joaquim de Almeida Cunha, João Manuel Lopes de Oliveira, Arnaldo Folhadela Guimarães, Roberto Frias Jr., Guilherme Bernardo de Oliveira. (M. Félix Ribeiro ― Invicta Film, uma organização modelar.)
3 Félix Ribeiro, in «Invicta Film ― uma organização modelar».
4 Data do desembarque de D. Pedro IV, no Mindelo, que por aquela rua passou a caminho do centro da cidade.
5 In «Singularidades do Cinema Português».
6 In «A evolução e o espírito do Teatro em Portugal» (2.º ciclo de conferências, p. 297).
7 Programa n.º 38 do Cineclube de Estremoz.
8 «Teatro e Cinema», por António Ferro, edição S.N.I. Colecção «Política do Espírito».
Informação retirada de Breve História do Cinema Português (1896-1962) de Alves Costa
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