quarta-feira, 20 de julho de 2022

Pelas ruas de Lisboa


 

Trabalhadores Rurais


 

Mirandela - Largo de S.Francisco e entrada para o Cemitério


 

Bragança - Antiga Casa da Câmara


 

Mirandela - Praça das Eiras e Escolas Primárias


 

Mirandela - Quartel Militar


 

Miranda do Douro - Fonte dos Canos


 

Mirandela - Teatro 1º De Maio


 

Douro - Condução do Vinho




 

Bragança - Praça da Sé


 

Bragança - Torre de Menagem

História do Cinema em Portugal - Aurélio da Paz dos Reis - O Pioneiro Português


No dia 12 de Novembro de 1896, portanto a menos de um ano de distância da primeira sessão pública com o «cinematógrafo Lumière», um português, Aurélio da Paz dos Reis, conhecido e estimado comerciante portuense e grande amador fotográfico, apresentava, por seu turno, no Teatro Príncipe Real, do Porto, os primeiros filmes portugueses. Pouco se sabe sobre o aparelho que Paz dos Reis utilizou para filmar e projectar as suas fitas. Algumas vezes se afirmou ter Paz dos Reis ido a Paris e conseguido dos irmãos Lumière a venda de um «cinematógrafo». Nada o confirma. Bem pelo contrário. No aparelho dos Lumière só passavam películas com uma perfuração circular de cada lado do fotograma. Os filmes de Paz dos Reis (de que possuo dois fragmentos de um deles), em película da marca «Eastman», apresentam quatro perfurações quadrilongas de cada lado do fotograma. Em face desta circunstância concludente, levantam-se duas hipóteses. Ou Paz dos Reis viu o aparelho Lumière  (ou alguma das suas imitações, que já as havia quando se diz ter ele ido a Paris) e mandou construir aqui uma máquina semelhante a que deu o nome de «kinetographo portuguez», coisa a encarar com reservas mas plausível se quisermos acreditar no que se lê no Programa da sessão realizada em Braga em 21 e 23 de Novembro de 1896: «O kinetographo é um aperfeiçoamento dos aparelhos denominados animatógrapho, cinematógrapho, vitagrapho, etc. que há perto de um ano teem obtido o maior dos sucessos em todas as capitais onde se teem exibido»; ou trouxe de Paris um outro «cinematógrafo», como o que foi patenteado pelos irmãos Werner com o nome de «cinégrapho» mas designado, também, tempos depois, por «kinetógrapho». Esta segunda hipótese é mais aceitável e é para ela que se inclina A. Videira Santos, que procurou investigar o assunto e dele trata no seu livrinho Paz dos Reis ― cineasta ― comerciante ― revolucionário. Mas há aqui um facto curioso. Aurélio da Paz dos Reis, ao anunciar as suas «projecções luminosas a luz eléctrica, em tamanho natural, de photographia animada», cita o cinematógrafo e o vitagrafo e refere o nome de Edison como inventor do cinema. Não cita o nome dos Lumière. O que me parece estranho, embora a citação do nome de Edison, mundialmente famoso e admirado, pudesse ter sido um expediente publicitário De resto, na pré-história do Cinema, há ainda muita coisa imprecisa, de difícil investigação e contraditória. Comparemos, agora, algumas datas. Os Lumière apresentam o seu cinematógrafo, em Paris, em 28 de Dezembro de 1895. Quase ao mesmo tempo que Edison começava a vender o seu deficiente projecting kinetoscope, os Werner registam o seu cinégrafo em Fevereiro de 1896, que depois vendem com o nome de kinetógrafo. Só em Abril desse mesmo ano Edison apresenta o vitascope. Por sua vez, Paz dos Reis apresenta o kinetógrafo português em 12 de Novembro de 1896. Ora, se aceitarmos que Paz dos Reis tinha conhecimento dos novos aparelhos americanos, o facto de citar o vitagraph põe em causa a exactidão do que nos diz Georges Sadoul ― considerado uma autoridade em matéria de história do cinema ― a páginas 332 da sua Histoire Générale du Cinema ― vol. 1 ― L’invention du Cinéma. Diz Sadoul que, em 1896, tendo Edison começado a vender um projector a que chamou «projecting kinetoscope», Blackton, associado a um dos seus amigos, de nome Smith, tinha conseguido adaptar este aparelho a máquina de filmar e projectar, dando-lhe o nome de «vitagraph». Este mesmo nome seria dado, mais tarde, à Companhia produtora de filmes que os mesmos indivíduos fundaram. E Sadoul afirma que o primeiro filme feito com o «vitagraph» é datado de Novembro de 1897. Sendo assim, como é que Paz dos Reis, aqui em Portugal, já se refere ao «vitagraph» um ano antes?! Este simples pormenor vem provar como isto de datas e de prioridade de inventos, é ainda, muitas vezes, matéria nebulosa e incerta, por incertas e nebulosas serem frequentemente as fontes de informação. O mesmo se dá quanto à autoria de certos filmes primitivos, regra a que não fogem algumas obras atribuídas a Paz dos Reis, com a agravante de nem uma só se ter salvo. A única coisa sobre que não restam duvidas é que se chegou ao cinema, melhor ou pior, aqui, ali e além, na Europa e na América, quase simultaneamente, apenas com curtas ultrapassagens pelo caminho. Aurélio da Paz dos Reis nasceu no Porto em 28 de Julho de 1862. O pai era negociante, a mãe dirigia uma casa de modista. No Porto fez Aurélio os seus estudos,  não chegando a completar o curso dos liceus. Não obstante seu avô ser miguelista ferrenho, as inclinações políticas de Aurélio da Paz dos Reis voltavam-se para a República, tendo participado nos acontecimentos do 31 de Janeiro, pelo que chegou a estar preso. Não se sabe ao certo se participou activamente na revolução ou se, apenas, o seu entusiasmo pelas ideias republicanas o levou a juntar-se aos revolucionários, que viriam a ser tragicamente dominados. Não há dúvidas, porém, de que participou em comícios republicanos. Assinalam os jornais da época que «no decorrer de um grande comício realizado próximo do Campo 24 de Agosto, em 1908, Aurélio da Paz dos Reis fez a entrega de um ramo de camélias a Bernardino Machado.» A Monarquia estava por um fio e a derrota do 31 de Janeiro não esfriara o seu republicanismo. Não foi, porém, como político que mais se destacou. No Porto era muito estimado pelo seu carácter, pelo seu trato, pela sua verticalidade e honradez de comerciante. Aqui criou e desenvolveu um negócio de sementes, flores e artigos de jardinagem. A sua «Flora Portuense» situava-se no local onde hoje existe a confeitaria Ateneia, na Praça da Liberdade, e era abastecida pelas plantas que cuidadosamente cultivava no quintal da sua residência, na Rua de Nova Cintra, 125. As suas culturas ficaram famosas e muitas das espécies que saíam do seu horto levavam Certificado de Origem. O floricultor Paz dos Reis, que chegou a ter um comércio de vulto e relações com horticultores franceses e holandeses, era também um grande amador fotográfico. Deste gosto pela fotografia viria o seu entusiasmo pelas imagens animadas logo que delas tomou conhecimento. E daí ter procurado imediatamente adquirir uma máquina de filmar e projectar, que teria trazido de França com alguns filmes Porque lhe chamou kinetógrafo português? Não se sabe. O certo é que Paz dos Reis rodou e projectou os primeiros filmes portugueses em 1896, quando o cinema dava ainda passos incertos e estava pouco seguro dos caminhos por que iria seguir no futuro. 


Dos filmes de Aurélio da Paz dos Reis nada resta. O que torna ainda mais difícil estabelecer uma filmografia com exactidão. Como um dos raros elementos de referência ficou, felizmente, um programa da sessão realizada no Teatro de S. Geraldo, de Braga, em 21 e 23 de Novembro de 1896. Mas ali aparecem alguns títulos que não devem atribuir-se a Paz dos Reis, pois deve tratar-se dos filmes que teria trazido de França: Um boulevard-Paris, Manobras de Bombeiros, Lutadores Franceses, Dança Serpentina Loie Fuller e, possivelmente, também O jardineiro ― cena de um cómico irresistível (L’arroseur arrosé, de Lumière?). Coligindo elementos dispersos, A. Videira Santos, estabeleceu, no entanto, a seguinte lista:  Chegada de um comboio americano a Cadouços ― A Rua do Ouro ― Azenhas do Rio Ave ― Jogo do pau ― Feira de S. Bento ― No jardim ― Saída do pessoal operário da Fábrica Confiança- Feira de gado na Corujeira ― Cortejo eclesiástico saindo da Sé do Porto no aniversário da sagração do Eminentíssimo Cardeal D. Americo ― Marinha no Tejo, saída de dois vapores ― O Zé Pereira na Romaria de Sto. Tirso ― A dança serpentina e ainda A caninha verde ― Rua Augusta ― Movimento e ruas de Lisboa ― Braga ― Coimbra ― Barcelos ― Senhor de Matozinhos ― Costumes de aldeia (oito títulos que foram colhidos na imprensa do Rio de Janeiro, que os indica como fazendo parte do reportório do «kinetógrafo português» em terras brasileiras, o que e aconselhável tomar com alguma reserva.) A estes, Félix Ribeiro, em A maravilhosa História da Arte das Imagens, acrescenta: Rio Douro ― Mercado do Porto ― Torre de Belém ― Avenida da Liberdade ― O Vira (títulos que devem encarar-se igualmente com reservas, pois alguns deles podem referir-se aos «quadros fixos» que Paz dos Reis levou ao Brasil.) Quanto ao filme A dança serpentina, referido por A. Vieira Santos (op. cit.) na filmografia que cuidadosamente procurou estabelecer, podem levantar-se algumas dúvidas. Por um lado, A. V. S. é peremptório na nota que se segue à indicação desse título (sem, no entanto, dizer como e onde recolheu as informações que presta): «Neste filme, a então na moda dança dos véus, foi executada por uma actriz brasileira que no Verão de 1896 interpretava no Porto um papel na peça de Schwalbach, «Os filhos do capitão-mor»: Cintra Polónio, que na altura contava 35 anos. A película teria sido filmada no quintal de Paz dos Reis, onde a actriz executou a dança celebrizada por bailarinas estrangeiras». Ora, no programa da sessão realizada em Braga está indicado o título Dança serpentina Loie Fuller. O próprio A. Videira Santos, em notas à filmografia de Paz dos Reis, diz que este filme é francês. Teria Paz dos Reis realizado um filme cópia deste? Videira Santos não o explica. O que se me afigura é que o filme referido no programa é um dos antigos filmes americanos dos kinetoscópios que passaram posteriormente para o cinematógrafo. A ele se refere Georges Sadoul: «Este filme foi apresentado em França com o nome de Dança da Loie Fuller e era interpretado por Annabelle, jovem dançarina da Broadway. Sabe-se que a dança serpentina, que tornou célebre Loie Fuller, era executada com a bailarina envolta em longos véus sobre os quais se projectavam fachos luminosos de várias cores, o que permitia evocar ora uma flor, ora uma borboleta. Sem estes efeitos coloridos a dança serpentina perdia muito do seu atractivo. Em face disso, os produtores encarregaram M.e Kuhn, especialista nestes trabalhos, de pintar, fotograma a fotograma, uma cópia de A dança de Annabelle (assim se intitulava o filme na América) para o transformar num filme colorido.» (Histoire Genérale du Cinema ― Vol. 1, pp. 250.) De que se trata, afinal? Do filme americano? De um plágio deste, feito em França? De um filme de Paz dos Reis em que Cintra Polónio, tal como Annabelle, imitava a Loie Fuller? Trata-se de dois filmes distintos? Como nada resta da obra de Paz dos Reis, difícil será averiguar. As projecções feitas em Portugal por Paz dos Reis ― talvez por deficiências técnicas ― não despertaram mais do que um momentâneo movimento de curiosidade. O dinheiro investido no «kinetógrafo português» e nos filmes realizados não foi recuperado. Paz dos Reis pensou, então, no Brasil e para lá partiu em 8 de Dezembro de 1896, com máquina, filmes e vistosos cartazes publicitários. No Rio de Janeiro, por circunstâncias várias, entre as quais uma chuva torrencial, o êxito não foi por aí além. Em Fevereiro já Paz dos Reis estava de novo no Porto, desiludido. Abandonando o cinema, voltou às suas flores e outras ocupações (fez parte de algumas vereações da Câmara Municipal do Porto). Em 1919, por ocasião da epidemia da pneumónica, morrem-lhe três dos seus quatro filhos. Foi um golpe muito duro que não deixou de pesar nos dias que se lhe seguiram. Doze anos mais tarde, a 19 de Setembro de 1931, acometido de congestão cerebral, morria Aurélio da Paz dos Reis, autêntico pioneiro do cinema português, aqui realizando filmes antes mesmo da Espanha, da Itália, da Rússia, da Suécia e da Noruega. «Se é certo que Paz dos Reis seguiu muito de perto os assuntos já tratados e que teria visto em França, o facto é que ninguém lhe pode negar a glória de ter sido o primeiro português a realizar filmes, numa altura em que o cinema era ainda quase desconhecido na maior parte do mundo.» 1 Infelizmente, não teve imediatos continuadores. Nem ânimo sobrou a Paz dos Reis para superar as primeiras desilusões. Começou demasiado cedo. E assim se perdeu a oportunidade por que passou o cinema português de nos legar alguma coisa sobre o nascimento da República cujos ideais Paz dos Reis abraçara desde muito novo. O cinema português nascia e morria naquele ano de 1896. Para só renascer alguns anos mais tarde. 

Informação retirada de Breve História do Cinema Português (1896-1962) de Alves Costa

História do Cinema em Portugal - Os passos incertos dos «primitivos» - O florescimento do espectáculo cinematográfico em portugal


Tudo quanto se fez em Portugal, em matéria de cinema, desde 1896 até 1912, não vai muito além do que já havia sido feito por Aurélio da Paz dos Reis, uns anos antes. Assim, quando, em 1899, Manuel da Costa Veiga funda, com o operador Bobone, a primeira empresa produtora e distribuidora de filmes: a Portugal-Film, limita-se à realização de alguns documentários (Praia de Cascais, Parada de bombeiros, Exercícios de artilharia em Belém, etc.) e reportagens das visitas a Portugal de Afonso XIII, Guilherme II, o Presidente Loubet e o Príncipe de Gales. Será preciso esperar mais uns anos para encontrarmos (em 1908) o fotógrafo João Freire Correia e Manuel Cardoso (que já tinha montado um laboratório cinematográfico) à frente de uma nova empresa, a Portugália Film, igualmente produtora de documentários e de algumas reportagens (das quais ficou famosa a do terramoto de Benavente, de que se venderam mais de vinte cópias para o estrangeiro.) Cardoso e Correia chegaram a iniciar as filmagens de uma fita de enredo, Os crimes de Diogo Alves, que não conseguiram concluir. Seria um dos intérpretes, João Tavares, quem, em 1910, levaria o projecto até ao fim. Esta segunda versão de Os crimes de Diogo Alves (de que existe uma cópia na Cinemateca Nacional.) marca o início da produção de filmes de enredo em Portugal, mas não terá imediata continuidade. Em 1911, o actor Carlos Santos filma uma Inês de Castro, cuja cópia se perdeu; e, oito anos mais tarde, Emídio R. Pratas realiza Pratas conquistador, filme medíocre de imitação dos filmes cómicos italianos e primeira farsa do cinema português. Foi outra tentativa isolada. Com ela encerra-se, por assim dizer, o «período dos primitivos» do cinema português, cerca de catorze anos mais ricos de frustrações do que de experiências e iniciativas criadoras. 

Entretanto, o cinema, como espectáculo, assentara arraiais em Portugal. E desde logo conquistou não só um público popular, que no animatógrafo encontrava entretenimento barato, variado e acessível, mas também a burguesia e certos sectores intelectuais, que não desdenharam da novidade, quando em 1904 abriu, em Lisboa, o primeiro «animatógrafo»: o Salão Ideal, a que outros imediatamente se seguiram. No Porto, foi em 1906 que se inaugurou o primeiro cinema: o Salão HighLife. Era um grande barracão de madeira, integrado na Feira de S. Miguel, na Boavista. Dado o êxito do empreendimento, que se deve ao espírito de iniciativa de Manuel Neves, associado ao francês Edmond Pascaud, recentemente chegado ao Porto com um projector e algumas fitas da Casa Pathé, este barracão transferiu-se,nesse mesmo ano, para o Jardim da Cordoaria e, um pouco mais tarde, tomaria assento definitivo na Praça da Batalha, de que viria, anos volvidos, a tomar o nome. Por esses e outros «animatógrafos», que por volta de 1910 funcionavam em cheio, iria passar a torrencial produção dos estúdios de Vincennes e da Casa Gaumont, a par dos filmes dinamarqueses de «Nordisk», dos dramas e fitas históricas vindos de Itália, dos burlescos de Mac Sennett, dos filmes de aventuras americanos, dos primeiros «Charlots». O cinema tinha andado muito depressa, não só em França e nos Estados Unidos mas também em países que começaram a fazer filmes depois de Paz dos Reis. Portugal estava largamente ultrapassado quando, em 1918, se fundou no Porto a Invicta Film, primeira tentativa de criação, entre nós, de uma indústria cinematográfica. 

Em 1910 tinha-se implantado a República em Portugal. Aos novos governantes, diga-se de passagem, não escapou totalmente a importância do cinema. Infelizmente foi letra morta o decreto que introduzia o filme na Escola como instrumento auxiliar do ensino. E quando Portugal entrou na Primeira Grande Guerra Mundial, logo foi criado um serviço cinematográfico, junto do Exército, que realizou uma série de documentários. Só não apareceu um cineasta capaz de empunhar uma câmara de filmar para retratar ou exaltar a grande transformação socio-política por que o país tinha passado... 

Cabe aqui referir que foi nessa altura que apareceu a primeira censura a filmes, o que veio provocar um insólito incidente: Em 1914 começava a grande conflagração mundial. Em 1917, com a Europa em fogo, já Portugal tinha entrado na Guerra, ao lado das Nações Aliadas, para cumprir os compromissos assumidos pelo tratado de aliança com a Inglaterra e salvar as colónias da cobiça das grandes potências. Este estado de emergência obrigou a medidas de excepção. E, assim, o «Diário do Governo» n.º 155, 1.ª série, de 10 de Setembro daquele ano, publicava o Decreto n.º 3354 com o seguinte teor: 

1.º ― Nenhuma fita cinematográfica, de qualquer natureza ou procedência, que contenha assuntos militares ou directa ou indirectamente ou faça alusão aos exércitos beligerantes ou à Grande Guerra, poderá ser exibida nos territórios da República sem previamente ser sujeita à censura militar; 2.º ―  Os importadores ou proprietários das referidas fitas devem solicitar o seu exame prévio e o competente documento de livre exibição, no Ministério da Guerra, por intermédio da 4.ª Repartição da 1.ª Direcção-Geral da Secretaria da Guerra; 3.º ―  As fitas que forem encontradas em contravenção das disposições acima serão apreendidas e os seus proprietários ou empresários autuados por desobediência. 

Assinam este Decreto: Bernardino Machado (Presidente da República) e José Mendes Ribeiro Norton de Matos (Ministro da Guerra). 

Foi assim, pela primeira vez em Portugal e apenas para um caso particular, instituída a censura aos filmes. Ora, por causa desta medida, deu-se, passados poucos dias, um inesperado incidente: 

No dia 20 de Setembro de 1917 estreava-se no cinema Polyteama, de Lisboa, o filme Civilização, monumental película americana realizada em 1915, para a «Triangle», por Thomas Ince, tendo a empresa exploradora daquela casa de espectáculos requerido o respectivo exame prévio e, para o efeito, convidado o próprio ministro da Guerra, general Norton de Matos, a ver o filme, ao que ele acedeu, tendo sido passada, subsequentemente, pelo Ministério da Guerra, a devida autorização para o filme ser exibido livremente em público. Civilização era um filme de guerra discretamente inspirado no sangrento conflito europeu. Mas era um filme pacifista, por tendência que possivelmente teria sido incutida em Thomas Ince pelos interesses que dominavam a «Triangle». O pacifismo e a defesa da neutralidade americana caracterizavam quase todos os filmes de Hollywood, durante os dois primeiros anos das hostilidades, o que correspondia à posição da opinião pública. Em boa verdade, o filme tinha sido feito no fito de ganhar dinheiro com o pretexto de apoiar as ideias neutralistas em que assentava a campanha eleitoral do Presidente Wilson. E, de facto, tendo custado à roda de 100 000 dólares, rendeu 800 000. Não obstante, Civilização foi um dos filmes mais notáveis da sua época. Influenciado, em parte, pela tradição dinamarquesa e italiana, exerceu, por sua vez, uma grande influência sobre o cinema americano e sobre muitos realizadores europeus (entre os quais se aponta Abel Gance com o seu filme J’accuse). Tematicamente, o filme era um requisitório contra as desgraças ocasionadas pelas guerras. No decorrer da intriga, o espírito de Cristo vem à Terra (a fita tinha como subtítulo: «Aquele que regressa») para se encarnar num dos personagens. Este personagem era insultado e perseguido por ter querido restaurar a paz no mundo, mas acabava por triunfar das forças do mal. Todo o filme (realizado em décors monumentais, com uma mise-en-scène que exigiu a actuação de 40 000 figurantes) era de uma ingénua grandiloquência, carregada de pesados simbolismos, e sublinhava as consequências da guerra: privações, separação, destruição, tragédias, etc. O argumento tinha sido escrito por Gardner Sullivan e totalmente realizado por Thomas Ince, desde a «planificação», a escolha dos exteriores e a selecção dos intérpretes, até à encenação e montagem. Na Europa, em plena guerra, houve quem pensasse que o filme não era favorável à causa dos Aliados. Assim, foi manipulada uma versão, que lhe alterava um tanto o sentido, para ser exibida na Inglaterra e na França. Não sei se a cópia que veio para Portugal era ou não a versão original. Civilização foi exibido seis noites consecutivas no écran do Polyteama, sempre com grande interesse do público. Ao sétimo dia, com grande surpresa, o cinema recebeu uma contra-fé da polícia intimando-o a retirar imediatamente o filme de exibição. Pareceu, porém, à empresa do Polyteama que a autorização passada pelo Ministério da Guerra não podia ser anulada por uma simples ordem da polícia e, assim, nesse sétimo dia decidiu cumprir o programa anunciado exibindo o filme. Sabido isto, saiu um piquete do Governo Civil para impedir que se realizasse o espectáculo, logo seguido por uma força de cavalaria da Guarda Republicana para cercar o cinema. Mais papistas do que o Papa, e de acordo com ordens recebidas, os polícias prenderam o secretário da empresa e os projeccionistas. Surdos a todas as razões, confiscaram o filme e puseram os assombrados espectadores na rua... onde tamanho aparato já fizera juntar gente. No dia seguinte, a empresa publicava um veemente protesto contra aquela ocorrência que nada justificava. E o que é verdade é que, remetidos os presos ao Tribunal, ali foram absolvidos e mandados em paz por se provar não ter havido a desobediência invocada ao abrigo do n.º 3 do citado decreto. E a fita foi restituída aos seus donos. Mas... (e aqui está o mais curioso do incidente) a polícia manteve a proibição de exibição da fita, segundo ordem do Governo Civil, sem que o Ministério da Guerra tivesse feito valer a autoridade da licença que tinha passado. «Tudo isto não faz sentido ― comenta a «Cine-Revista» no seu número 8, de 15 de Outubro de 1917 ― e perante a eloquência de tão estranhos factos fica-se sem saber como proceder em circunstâncias semelhantes, pois que, para já, não se sabe qual é a verdadeira e suprema autoridade.» Este gostinho pelas proibições prepotentes e arbitrárias viria a ser prato do dia ― e não acidente ocasional ― quando, alguns anos mais tarde, o governo de Salazar generalizou a censura a todo o género de filmes, o que não deixaria de acarretar nefastas consequências para o cinema português e para a cultura cinematográfica em Portugal. Aos cineastas portugueses iria ser negada a liberdade de expressão e de abordagem de determinados temas, e, ao filme estrangeiro, a tesoura seria aplicada com particular ferocidade. Por sorte, num período de transição para a ditadura absoluta, ainda o público português pôde ver algumas fitas (como A Mãe, de Pudovkine, A Linha Geral, de Eisenstein, A Tempestade na Ásia, de Pudovkine) que não tardariam a ser consideradas «perigosas»... mesmo com alguns cortes. Mas em 1918, quando se abria um novo capítulo na história do cinema português, com a criação da InvictaFilm, no Porto, o cinema ainda era relativamente livre. Simplesmente, o cinema português, entre 1917 e 1925, volta-se para o passado, é feito por estrangeiros e passa ao lado das transformações que se tinham dado, dos problemas que o país enfrentava, das lutas políticas que se desencadeavam, da realidade circundante que parece ignorar. E essa realidade estava nos primeiros e difíceis passos da jovem República, nas reivindicações da classe operária, no movimento revolucionário de Sidónio Pais, na entrada de Portugal na Grande Guerra, nas novas correntes intelectuais, na progressiva transformação da sociedade portuguesa. Com esta observação, eu não quero tirar o mérito (nem ensombrar a homenagem que se lhe deve) ao homem de iniciativa que foi Alfredo Nunes de Matos, o obreiro perseverante e consciente dessa organização perfeita que foi a Invicta-Film, primeira tentativa a sério de montar em Portugal uma grande empresa produtora de filmes. Na realidade, e apesar de tudo, a Invicta-Film marcou um ponto alto na história da nossa cinematografia. Se Alfredo Nunes de Matos e os seus mais directos colaboradores tivessem pensado (e ainda hoje isso se esquece) que a produção depende da exibição, assegurando o largo escoamento e expansão dos filmes produzidos pela Invicta-Film com o mesmo cuidado que foi posto na montagem da nova indústria, talvez a empresa tivesse dominado as suas crises e resistido à concorrência tentacular das cinematografias estrangeiras, nomeadamente a americana. Assim, ultrapassada rapidamente, na qualidade, por um boa parte da produção que nos chegava de fora e abafada pela torrencial entrada de filmes estrangeiros, a Invicta-Film, chama ateada no Porto com tanta decisão e entusiasmo, apagar-se-ia em 1925. O seu nascimento, o seu apogeu e o seu declínio merecem um capítulo à parte. 

Informação retirada de Breve História do Cinema Português (1896-1962) de Alves Costa

História do Cinema em Portugal - A Invicta Film (1917-1924) ― O cinema português feito por estrangeiros


Alfredo Nunes de Matos, outro portuense, tinha criado, em 1910, uma firma, ainda modesta, sob a razão social de Nunes de Matos & C.ª (Invicta Film) para se dedicar à produção de «panorâmicas», filmes de reportagem e fitas de propaganda industrial. Para operadores chamou Manuel Cardoso, técnico competente que estivera ligado à extinta Portugália-Film, e o aragonês Thomas Mary Rosell, que, além de operador, era também responsável pelos trabalhos laboratoriais. De 1910 a 1917 foram muitas as dezenas de filmes produzidos por esta sociedade. De muitos se conhecem os títulos, embora quase nada reste desse documentarismo em que a firma de Nunes de Matos se especializara. Com enorme sentido de oportunidade, um desses documentários-reportagem incidiu sobre o naufrágio do «Veronese», que ocorreu frente à Boa Nova (em Leça) na madrugada de 10 de Fevereiro de 1913. O filme tinha uma metragem excepcional para a época (300 metros) e dele foram vendidas para o estrangeiro 108 cópias. De resto, dados os contactos de Nunes de Matos com a «Pathé» e a «Gaumont», muitos filmes da sua produção foram incluidos nos «jornais de actualidades» dessas casas francesas. Deste modo, correram mundo variadas imagens de aspectos e acontecimentos portugueses. Esta firma, que tivera a sua sede no n.º 135 da Rua de Santo Ildefonso, no Porto, instalou-se mais tarde, com um pequeno estúdio e um laboratório, numa dependência do Salão-Jardim Passos Manuel, famosa casa de espectáculos de cinema e music-hall que existiu durante muitos anos no local onde hoje se ergue o Coliseu, a que Alfredo Nunes de Matos estava ligado como orientador e gerente. Entretanto, Nunes de Matos, homem muito activo e empreendedor, ia estudando e amadurecendo um projecto ambicioso: criar no Porto um verdadeiro centro produtor de filmes, com estúdios espaçosos e bem equipados e laboratórios com bom apetrechamento e pessoal técnico devidamente habilitado. Em fins de 1917 decide ir para a frente, encontrando no banqueiro José Augusto Dias o primeiro apoio financeiro. E assim, no dia 22 de Novembro de 1917, constituía-se uma nova sociedade por quotas, com um capital de 150 mil escudos (verba que corresponderia, hoje, a mais de quatro mil contos) que adoptaria a designação de Invicta Film Limitada.  Todos os haveres da primitiva firma Nunes de Matos & C.ª (Invicta Film) constituídos por máquinas de filmar, aparelhagem técnica, material eléctrico, móveis e utensílios, assim como uma razoável quantidade de filmes, são adquiridos pela nova empresa para a qual transitam. Alfredo Nunes de Matos ocupa o cargo de gerente-técnico dentro do Conselho de Administração da Sociedade 2 que, por sua vez, contrata para director artístico da empresa Henrique Alegria, homem já ligado a negócios cinematográficos, pois a ele se devem a construção e exploração do cinema Olímpia, do Porto (que ainda existe, mas que à data da sua inauguração, em 18 de Maio de 1912, ostentava o nome pomposo de Olympia-Kinema-Teatro). Todo o pessoal técnico da antiga firma de Nunes de Matos passa para a nova sociedade que se encontra, assim, apta a funcionar antes mesmo da construção e equipamento dos projectados Estúdios. Em 1918, Alfredo Nunes de Matos e Henrique Alegria partem para Paris com o encargo de adquirirem o melhor material técnico e contratarem pessoal especializado. Entretanto, tornava-se necessário obter um local para a implantação do novo complexo industrial. Depois de várias pesquisas, foi decidido comprar a Quinta da Prelada, sita ao Carvalhido, no Porto, propriedade da Santa Casa da Misericórdia. A transacção foi feita por 27 161$00 (valor da época). Os terrenos tinham uma área de 50 000 metros quadrados. Em tempos recuados a casa e quinta da Prelada pertenceram à família dos Noronhas, tendo sido reformadas, em 1770, pelo arquitecto italiano Nicolau Nazoni. A viagem a França de Nunes de Matos e Henrique Alegria foi coroada do melhor êxito, pois encontram na «Pathé Frères» todo o apoio e colaboração. Dali trazem os planos de construção do futuro estúdio da Invicta Film e um grupo de técnicos experimentados: o operador Albert Durot, o arquitecto-decorador André Lecointre, o chefe de laboratório Georges Coutable, a montadora Valentine Coutable e o realizador George Pallu, que fizera a sua carreira de profissional de cinema no «Film d’Art» e na «Pathé». Mais tarde, os Coutable seriam substituídos por J. Trobat e Mme. Meunier, que, diga-se de passagem, eram técnicos excelentes, e o operador Durot daria o lugar a Maurice Laumann, um «cameraman» muito competente e que ficou no Porto até depois da extinção da Invicta Film. Com tudo pronto para a grande arrancada começa a construção dos Estúdios e Laboratórios da Prelada, cuja conclusão só se verificaria em 1920. Isto não impediu, no entanto, que a Invicta Film iniciasse, de imediato, a produção de filmes de enredo e longa-metragem. Por contrato com a Casa Pathé, esta então famosa produtora francesa obrigava-se a fornecer o filme virgem necessário, tirar cópias, fornecer material e mesmo fazer a montagem dos negativos. Em meados de Maio de 1918, já quase todos os elementos contratados em França se encontravam no Porto. E, no mês seguinte, iniciava-se a filmagem, sob a direcção de Georges Pallu, de Frei Bonifácio, adaptação de um conto ainda inédito de Júlio Dantas. Em 4 de Outubro de 1918, o filme (com duas partes ― 800 metros) faz a sua estreia no cinema Olímpia, de Lisboa. Foi seu protagonista o actor Duarte Silva que, por muito tempo, se conservou ao serviço da Invicta Film. O conto tinha bastante humor; Duarte Silva, que se estreava no cinema, fez um excelente papel; a qualidade técnica da fita era, para a época, muito razoável; tudo isto junto granjeou para este Frei Bonifácio cinematográfico um merecido sucesso. Feito em cinco dias, foi uma espécie de prova de capacidade de todos quantos nele intervieram. Começava a era do «cinema português feito por estrangeiros».  Georges Pallu era um homem inteligente e culto, bacharelado em Direito pela Faculdade de Paris. Atraído pelo cinema, ingressou nos quadros do «Film d’Art» onde ganhou grande experiência. Profissional competente, não era, infelizmente, um inovador. Faltava-lhe a chispazinha de gênio de um Louis Delluc, por exemplo. Em contrapartida era «homem probo, fino de trato, impecável nos seus contactos humanos. A partir do momento em que cruzou o portão da Quinta da Prelada, Pallu logrou conquistar uma situação privilegiada mantendo com tacto, aprumo e compreensão pelo trabalho alheio uma posição de grande dignidade e de profunda simpatia que lhe granjearia, durante todo o período da sua larga presença entre nós, um ambiente de respeito e de completa adesão» 3. 

Demonstrada, com Frei Bonifácio, a capacidade dos técnicos contratados em França, a empresa não espera pela construção dos Estúdios e Laboratórios do Carvalhido para prosseguir com a produção de filmes de enredo. É assim que, em princípios de 1919, entra em rodagem uma fita mais ambiciosa, adaptação de um romance muito popular de Manuel Maria Rodrigues: A Rosa do Adro. Pensa-se, na Invicta, que a produção deve apoiar-se na literatura nacional para garantir o êxito comercial dos seus filmes com a popularidade de que gozavam certas obras literárias. Não só obras menores: Eça, Camilo, Júlio Dinis, Abel Botelho, são autores que podem assegurar o interesse do público. «O Primo Basílio», «Amor de Perdição», «Os Fidalgos da Casa Mourisca», «Mulheres da Beira» entram nos projectos de produção da Invicta Film. É certo que, das obras desses romancistas, ficará, na sua transposição para o cinema, pouco mais do que a ilustração, perdendo-se muito do que representam como pintura e análise de uma sociedade e de uma época. Conserva-se intacto o conflito, mas diluem-se as suas profundas motivações. A obra mais conseguida de George Pallu ainda será Os Fidalgos da Casa Mourisca, de problemática mais simples: embates de sentimentos correlacionados com o confronto da decadência, os preconceitos de casta, o tradicionalismo, e a ociosidade duma aristocracia provinciana a afundar-se, com a emancipação do trabalhador rural, num esboço de luta de classes que já vem adoçada e conciliante desde a obra original. De Camilo ou Eça pouco mais será retido do que a urdidura anedótica de duas das suas obras mais famosas. O que, de resto, voltaria a acontecer mais tarde quando Camilo, Eça e Júlio Dinis foram retomados por realizadores portugueses e quando o cinema tinha já outra maturidade. A Rosa do Adro foi filmado quase totalmente em exteriores. As poucas cenas de interior tiveram de rodar num «plateau» improvisado no Salão-Jardim Passos Manuel à falta de instalações apropriadas. Os trabalhos de laboratório foram executados em Paris. Rosa do Adro faria a sua estreia, no Sá da Bandeira, do Porto, em Julho de 1919. Sem soluções de continuidade e no desejo de manter todos os seus sectores em actividade, a Invicta escolhe a peça satírica de Gervásio Lobato, O Comissário de Polícia, para entrar imediatamente em rodagem, enquanto se vão fazendo os trabalhos preparatórios do que viria a ser a super-produção daquela empresa produtora: cuidados trabalhos de adaptação, de escolha de locais, de contratação de artistas, para que as filmagens pudessem iniciar-se (e concluir-se) em 1920. Iria rodar-se Os Fidalgos da Casa Mourisca. «O ano de 1920 ― escreve Félix Ribeiro, em Invicta Film ― Uma organização modelar ― marca, incontestavelmente, uma data do maior significado e importância no panorama do historial da Invicta Film, pois foi, então, que dois acontecimentos do mais alto relevo tiveram lugar. Com efeito, nos começos do ano são dadas por concluídas as vultuosas e dispendiosas obras de construção de todo o complexo operacional da empresa portuense ― do estúdio e demais dependências ao laboratório e respectivo equipamento, bem como dos escritórios, armazéns para guarda e conservação de cenários e depósito de variado material. Por outro lado é, então, também, que tem início e se conclui a produção do filme Os Fidalgos da Casa Mourisca, que ficaria a marcar, indubitavelmente, um dos maiores êxitos do cinema silencioso português até então verificado, claramente demonstrativo da capacidade profissional dos que nele intervieram e, ao mesmo tempo, testemunhando o valor dos meios de toda a ordem, técnicos como artísticos, postos à disposição do realizador.» Ainda cheguei a ver, já ao abandono, prestes a ser demolido, o grande complexo de que se compunha a Invicta Film. Era a ruína de um sonho. Causava dó... Eis como o descreve Félix Ribeiro, tal como se inaugurou festivamente em princípios de 1920: «O estúdio ― teatro de «prise-de-vues» ou de pose, como, ao tempo, era mais conhecido nos países latinos, da França à Itália ― constituía uma ampla galeria construída de ferro e vidro, com os seus trinta metros de comprimento por vinte de largo e dezassete de altura, cuja disposição fora estudada de molde a poder ser aproveitada ao máximo a luz natural. Uma das partes laterais do imóvel, a que se encontrava voltada para o Nascente, deslocava-se lateralmente como se se tratasse de um monumental portão. O tecto era, igualmente, constituído por placas de vidro por forma a que a luz, quando necessário, pudesse penetrar no interior. Só mais tarde a luz artificial viria a ser utilizada por meio de baterias suspensas de lâmpadas de vapor de mercúrio e de arcos voltaicos. (...) Ao longo de todo o comprimento do estúdio estava instalada uma ponte rolante que permitia o transporte de grandes cenários e outros materiais, consentindo, ainda, filmagens a partir desse ponto de vista. Fazendo corpo com ele, mas exteriormente, existiam várias dependências: camarins de artistas, camarins para figuração, gabinetes do «metteur-en-scène» e do director artístico, e igualmente, para o decorador. Junto ao estúdio existia uma outra explicação dividida em dois sectores. Num deles estava instalada a central eléctrica, equipada com eficiente material, em que se destacava um motor Wolvering de 80 HP e outro da marca Bacherini, permitindo o fornecimento de energia de 300 ampéres. O outro sector destinava-se à oficina de carpintaria, sala de pintura e à guarda de cenários e adereços. Um segundo conjunto de edificações situava-se a pequena distância do estúdio: um edifício central de dois pisos ladeado por dois outros, com rés-do-chão e primeiro andar. No do centro situava-se a sala de recepção, a sala de reuniões da Administração, o gabinete do administrador-delegado e do gerente-técnico, o escritório geral e a sala de expedição. O edifício da esquerda era ocupado pelo laboratório, equipado com material Pathé, e sala de montagem. No edifício da direita encontravam-se instaladas as secções de «letreiros» (pois era a Invicta que se ocupava da elaboração das legendas em português, ou «letreiros», como então se lhes chamava, dos filmes estrangeiros que se exibiam em Portugal), a tipografia e, por último, a sala de projecções equipada com um projector de recente modelo da marca Pathé.» Os Fidalgos da Casa Mourisca, com exteriores filmados no Alto Minho, no solar conhecido por Torre de Lanhelas, junto da estrada que vai de Caminha para Valença, e na Tapada da Ajuda, foi a primeira produção saída dos novos estúdios. Com dez partes (cerca de 4500 metros) divididas em duas jornadas, o filme apresenta uma grande unidade e uma excelente ambientação, prova dos cuidados de que se revestiu o empreendimento. Da qualidade dos trabalhos laboratoriais fala por si o excelente negativo que, algumas décadas mais tarde, viria a ser descoberto e salvo pelo Cineclube do Porto e hoje se encontra na posse da Cinemateca Nacional. O êxito de Os Fidalgos foi retumbante e invulgar, tanto em Portugal como no Brasil. Ao rigor da encenação juntava-se a boa qualidade da fotografia, devida ao operador Maurice Laumann, recentemente contratado pela Invicta, e um apreciável desempenho de Pato Moniz, Duarte Silva, António Pinheiro, Etelvina Serra, Mário Santos, Erico Braga, Encarnación Fernandez, Salvador Costa, José Silva, Artur Sá e Adelina Fernandes. O reputado actor e encenador António Pinheiro viria, tempos mais tarde, a passar para trás das câmaras, dirigindo a farsa Tinoco em Bolandas (1922) e Tragédia de Amor (1924). 

Chegados aqui, tudo parecia indicar que iria estabilizar-se uma indústria cinematográfica portuguesa. Até porque, com o exemplo da Invicta Film, outras iniciativas, indo no seu rasto, tomavam vulto em Lisboa, como a seguir se verá. Foi tudo fogo de palha. A Invicta Film duraria apenas mais quatro anos. Desmoronava-se num ápice o que fora um grande e probo esforço. Na altura do lançamento de Os Fidalgos da Casa Mourisca, tudo, porém, parece correr pelo melhor. A produção vai prosseguir imediatamente com o melodrama Amor Fatal e a curta comédia burlesca Barbanegra. Os filmes são fracos. Foi talvez uma maneira de manter uma actividade ininterrupta enquanto tudo se preparava para um empreendimento de maior fôlego: a adaptação ao cinema do romance de Camilo, «Amor de Perdição», em que trabalhou o jornalista Guedes de Oliveira. George Pallu volta a aplicar a sua proficiência profissional, o seu rigor de encenação, o seu empenho, e o filme estreia-se, com êxito e muitas lágrimas do público, em Novembro de 1921, no cinema Olímpia, do Porto. Amor de Perdição restaura a tradição de qualidade dos filmes da Invicta. Entretanto, chegado ao Porto (em Agosto do mesmo ano) à procura de trabalho, o realizador italiano Rino Lupo apresentava-se na Invicta Film. É o próprio George Pallu quem aconselha a Administração a confiar ao recém-chegado a realização de Mulheres da Beira, segundo um conto de Abel Botelho. O italiano dirá de si próprio, em entrevista concedida ao «Diário de Lisboa»: «... como «metteur-en-scène», sou um pintor. Deixo accionar livremente toda a minha fantasia, vejo os aspectos e os panoramas, fixo-os e idealizo depois o quadro a reproduzir. Mulheres da Beira será, pois, se me consentem a audácia, um verdadeiro filme de arte, de emoção e de beleza campesina. Dei toda a alma a um assunto português, adaptando-me, quanto pude, aos vossos hábitos, aos vossos costumes e ao vosso sentimento.» Rino Lupo ― romano de nascimento e nómada do cinema, pois exercera a sua profissão de realizador de filmes, sucessivamente, em Paris, em Copenhague, em Moscovo e em Varsóvia deu, de facto, boa conta de si. Mas a Invicta não concorda com os seus métodos de trabalho: improvisação e pouco respeito por planos prévios de trabalho, e rescinde o contrato. George Pallu fica de novo sozinho com dois projectos de responsabilidade nas mãos: a realização de O Destino, com argumento original de Ernesto de Menezes, jornalista e crítico de teatro, e O Primo Basílio, adaptação da obra célebre de Eça de Queirós. A história de O Destino tinha sido imaginada a pensar em Palmira Bastos, destacada figura do teatro português. Pallu esmerou-se na realização e o filme resultou um dos maiores êxitos do cinema português, mantendo-se em cartaz durante largo tempo. Mas da protagonista, o crítico da revista «Porto Cinematográfico» diria: «Palmira Bastos, a quem coube o principal papel, vence com alguma dificuldade as contrariedades de uma primeira apresentação ante a câmara cinematográfica.» (Uma coisa não tem nada com outra, mas talvez seja curioso apontar ter Palmira Bastos declarado uma vez detestar Charlot...) Quanto a O Primo Basílio, custou alguns amargos de boca à Invicta Film. Contra o filme e contra a empresa produtora levantaram-se tão violentas campanhas em alguns jornais que chegou a pensar-se em desistir da exploração do filme em Portugal. O filme era uma baça ilustração da obra literária, de que só ficou o enredo, rigorosamente respeitado. No entanto tinha qualidades que (tal como aconteceria com uma segunda versão de Amor de Perdição) não foram ultrapassadas quando, anos mais tarde, António Lopes Ribeiro retomaria o mesmo tema, sem garra nem invenção, já o cinema era sonoro... Para essa primeira versão de O Primo Basílio (que tanta puritana celeuma levantou... e eram bem discretas as cenas de amor no «Paraíso») foram contratados nomes de relevo na cena portuguesa: Ângela Pinto, António Pinheiro, Amélia Rey Colaço, etc. Por desgraça, coube a Robles Monteiro o papel de Basílio, que fez do ardiloso sedutor uma espécie de empenado e deselegante Casanova da Rua dos Correeiros... Em compensação a grande Ângela Pinto encarnou à criada Juliana na perfeição. Tínhamos chegado ao ano de 1922. A nenhum português mordera ainda o bicho do cinema o bastante para se igualar aos estrangeiros aqui chamados. António Pinheiro, essencialmente homem de teatro, não foi além de pisar métodos que já estavam a envelhecer; e Augusto de Lacerda, jornalista e autor teatral, não passou do filme Tempestades da Vida, que realizou para a Invicta pouco depois de António Pinheiro ter dirigido a comédia-farsa Tinoco em Bolandas. O filme de Augusto de Lacerda esteve para se chamar Náufragos da Vida. Presságio? No ano seguinte acentuava-se o declínio da Invicta Film, que se saldaria por um completo afundamento. 

Em 1923 a Invicta começou a sentir a necessidade de alargar o mercado para os seus filmes. Alias, o cinema tinha andado mais depressa do que os responsáveis pela Invicta supunham. Não só do ponto de vista técnico e artístico, mas também do ponto de vista comercial e industrial. Os filmes da Invicta ressentiam-se da comparação que o público fazia com o cinema que lhe vinha de fora e da concorrência comercial do filme estrangeiro. Assiste-se, então, a algumas transformações: aumento de capital, reapetrechamento técnico e um olho noutros mercados, que se supôs ser possível interessar contratando uma artista francesa. George Pallu vai a Paris e traz de lá Francine Mussey. A gentilsinha actriz não é o remédio de que a Invicta necessita para revolver a grave crise financeira que começa a enfrentar. Num país com um pequeno número de salas de cinema, sem saída fácil para as suas produções e sem possibilidades de expansão para dentro e para fora do país, onde a concorrência é, a todos os níveis, cada vez mais forte; sem qualquer apoio a nível de Estado, que, por sua vez, enfrentava constantes problemas e inquietantes crises económicas e políticas, a Invicta Film, tão modelarmente erguida poucos anos antes, irá soçobrar. Cláudia e Lucros ilícitos (1924), filmes medíocres e incaracterísticos (que se pretendem «modernos», com a jovem francesinha a dar-lhes um ar de frescura) serão o «canto do cisne» da empresa portuense. De 1925 a 1928 , a Invicta, já em vias de liquidação, ainda conservará alguma actividade laboratorial, mas essa mesma (confecção de legendas para os filmes estrangeiros) lhe será arrebatada pela Distribuidora J. Castello Lopes que, para o efeito, montou laboratório próprio, em Lisboa. Até que um dia (2 de Janeiro de 1931) é mesmo o fim. Todos os haveres da firma vão a leilão e o Estúdio, já posto ao abandono após uma última utilização por Rino Lupo para filmar os interiores de José de Telhado, será demolido. Tudo isto, de certo modo, pode parecer paradoxal. Mas já não o parecerá tanto se atentarmos melhor no que se passou (e que, afinal, não serviu de lição na altura nem ao longo do tempo). A derrocada da Invicta Film enraíza na desatenção aos exemplos da História do Cinema. Os fundadores e dirigentes da Invicta Film, ao montarem essa arrojada empresa, com um grande estúdio, óptimo equipamento e eficientes laboratórios, devem ter minimizado a importância da distribuição ou exploração directa da sua produção. Se, paralelamente ao esforço de organização da produção de filmes, tivessem criado um sistema de escoamento (uma rede de cinemas próprios, por todo o país, e agência de vendas em alguns centros estrangeiros), talvez a Invicta tivesse podido evitar a derrocada a breve termo, derrotada pelo fluxo do filme estrangeiro e falta de mercados. Mais do que uma vez, na sua Histoire Générale du Cinéma, George Sadoul aponta a distribuição como condicionante da produção. Isto é: só a eficiência da primeira pode garantir a continuidade da segunda. Por outro lado, os poderes públicos ― nem por sua própria iniciativa nem a solicitação instante dos interessados ― tão-pouco prestaram qualquer auxílio ou protecção à nascente indústria cinematográfica portuguesa. Enquanto a nova indústria procurava desenvolver-se sozinha, o mercado nacional mantinha-se escancarado à inevitável invasão de cinematografias expansionistas e bem organizadas, logo que se apagou o rescaldo da Primeira Grande Guerra. Tardiamente e com uma curtíssima visão das coisas, a primeira «protecção» que o Estado concede ao cinema português vem no decreto de 6 de Maio de 1927: a obrigação de incluir em todos os espectáculos cinematográficos um documentário português com a metragem mínima de 100 metros. Como é óbvio, este decreto, que ficou conhecido por «a Lei dos cem metros», não deu sequer para criar documentaristas e acabou por ser esquecido antes mesmo de ter sido revogado. No futuro, outras leis proteccionistas virão permitir a realização de um certo número de filmes (muitas vezes em pura perda), mas nunca servirão para assegurar e estabilizar uma cinematografia nacional capaz de cumprir uma função socio-cultural. Por outro lado ainda, seguindo uma tradição (Portugal sempre importou técnicos e artistas) a Invicta importou cineastas. Até aqui nada de mal. Só que a empresa não soube renovar os seus quadros. George Pallu era um homem culto, inteligente, honesto, proficiente, mas... fôra formado na escola do «Film d’Art», quando ainda o cinema era balbuciante como meio de expressão. E se, durante um ano ou dois, os filmes da Invicta puderam pôr-se a par da produção corrente que vinha de fora, em breve ia sobrar-lhes em regionalismo o que lhes faltava em qualidade e invenção formal. Na Invicta, todos pareciam alheios ao desenvolvimento do fenómeno cinematográfico que estava a operar-se por todo o lado... (Manuel de Oliveira ainda andava de bibe). E a situação agravou-se quando se deu o enfraquecimento económico (que, por certo, não se venceria mesmo que se tivesse concretizado o projecto de fusão ou cooperação com a Fortuna Film, fundada pela escritora Virginia de Castro e Almeida por volta de 1922, em Lisboa, e produtora de Sereia de Pedra e Os Olhos da Alma, realizados Pelo francês Roger Lion). Bem vistas as coisas ― e o caso da Invicta deveria ter-se sempre presente ― a decadência e ocaso dos Estúdios da Prelada estavam à vista muito antes do termo da sua existência. Era inevitável. 

Informação retirada de Breve História do Cinema Português (1896-1962) de Alves Costa

História do Cinema em Portugal - Ainda na era do cinema português feito por estrangeiros


Entretanto, fora da Invicta Film, muita coisa se tinha passado. Na verdade, os primeiros anos vinte são animados por uma grande azáfama cinematográfica, talvez impulsionada pelo exemplo que vinha do Porto. O que não quere dizer consolidação de uma cinematografia nacional. As empresas produtoras que se constituiram em Lisboa foram todas de vida efémera. Qualquer delas era mais rica de boas vontades, de entusiasmo, ou de oportunismo do que capacidades técnicas, artísticas e financeiras (embora, na época, um filme fosse ainda relativamente barato e pouco complicado, em comparação com os custos e as complexidades técnicas dos dias de hoje). Além disso, continuavam a faltar infra-estruturas de distribuição e exibição capazes de garantir a expansão e a rendibilidade da produção. Tal como acontecera no Porto, também, em Lisboa, um ou outro português se abalançou, com flagrante falta de jeito e pouca imaginação, na «mise-enscène» cinematográfica. Foi assim que Ernesto de Albuquerque dirigiu e fotografou uma Morgadinha de Val Flor, segundo a obra de Pinheiro Chagas, e ainda: O Rei da Força e O Suicida da Boca do Inferno. Por sua vez, Lino Ferreira adapta ao cinema a peça dos irmãos Quintero O Centenário, com os mesmos intérpretes que teve no teatro: a Stichini, José Ricardo, Jorge Grave e Rafael Marques. Uns tempos antes destes esforços isolados, tinha aparecido, pela primeira vez (1918) Leitão de Barros; mas só mais tarde assumiria posição relevante numa terceira fase do cinema mudo português. Na altura, Leitão de Barros dirige, para a recém-constituída firma Lusitânia (que chegou a construir uns estúdios, mas teve curta existência), dois pequenos filmes pouco significantes: Malmequer, comédia galante «vestida à Luís XV»; e Mal de Espanha, sátira ao erótico enlevo dos burgueses da época pelas carnudas espanholas de café-concerto. E não se passa daí. Filmes para a história só ficaram, realmente, os que foram confiados a realizadores profissionais estrangeiros: Maurice Mariaud, Roger Lion e Rino Lupo, chamados a Lisboa à semelhança do que a Invicta Film tinha feito com Georges Pallu. Em 1922, a escritora Virgínia de Castro e Almeida funda, com capitais próprios, a Fortuna Film. E contrata o realizador francês Roger Lion e os artistas, também franceses, Maxudian, Gil Clary e Jean Murat, para trabalharem na nova empresa. A primeira produção da Fortuna viria a ser Sereia de Pedra, de que foram operadores de câmara os franceses Quintin e Bizot. Parece que o filme tinha uma certa qualidade (há mesmo quem assevere que tinha muita qualidade) mas, como se perdeu, é impossível verificá-lo. A realização foi de Roger Lion. No ano seguinte, o «Diário de Notícias» anuncia que se irá rodar em Portugal A Fonte dos Amores, segundo um argumento de Gabriela Réval, sob a direcção de Roger Lion, com artistas franceses no elenco. Picada por ofendido patriotismo a revista «Cine Lisboa», no seu número 4, insurge-se violentamente contra essa «alcateia de técnicos e artistas estrangeiros que vêm aqui sugar-nos a vida aos preços de escudos desvalorizados que compram com bons francos de 15 tostões cada». A desanca destina-se não só aos estrangeiros (a Gabriela Réval chama a revista «tricoteuse de romances para meninas eróticas» ... ) mas também e muito especialmente ao então director do «Diário de Noticias.» A exaltada «Cine Lisboa» vai até ao insulto e clama que tendo nós técnicos, argumentistas e artistas «todos portugueses de gema, só eles teriam o direito de fazer filmes portugueses». Com tanto desgaste patriótico a revista iria morrer pouco depois... Em vez desse filme, Roger Lion realizará para a Fortuna Film Os Olhos da Alma, que obteve grande êxito e foi vendido para França. Deste filme existe uma cópia na Cinemateca Nacional. Visto hoje, apresenta uma curiosa particularidade. Parte da acção passa-se na Nazaré, ou melhor: passa pela Nazaré, porque a intriga não tem nada a ver directamente com aquela praia de pescadores. Quando muito, ter-se-á pensado em ir lá buscar um bocadinho de folclore. Mas o realizador deve ter ficado de tal forma impressionado com o que lá surpreende que não resiste a incluir na fita as cenas de um naufrágio (sequência, aliás, prodigiosa) de um realismo e de uma autenticidade impressionantes. Estas cenas, totalmente «descoladas» do melodrama de cordel que é Os Olhos da Alma, dir-se-ia um momento de cinema captado por um Gremillon ou um Joris Ivens e metem num chinelo o «mesmo» naufrágio que mais tarde iremos encontrar em Maria do Mar. Tanto Sereia de Pedra como Os Olhos da Alma tiveram como protagonista feminino a actriz cinematográfica Maria Emília Castelo Branco que toda a vida se esforçou por ser a Pina Manichelli do cinema português, mesmo depois do declínio das «divas» italianas... É também em 1922 que Raul de Caldevilla funda, com capitais portuenses, uma nova e ambiciosa empresa: a Caldevilla Film, sobre a qual vale a pena determo-nos um instante. 

Raul de Caldevilla era um homem do Porto. Activo, empreendedor, arrojado e de vistas largas. Um dia teve a ideia de montar uma indústria cinematográfica em Portugal, seguindo as pisadas da Invicta Film, mas à altura de competir nos mercados estrangeiros. Como não era homem que fizesse as coisas no ar, visitou os estúdios de Itália e da França e estabeleceu os seus planos a partir do que por lá viu e aprendeu. De regresso a Portugal constituiu uma empresa produtora, a Caldevilla Films, dando imediato início à construção de um Estúdio segundo o projecto de um arquitecto francês. Se não tivesse ficado pelos alicerces, poderia ter sido, na altura, o melhor estúdio da Europa. Por outro lado, o plano de produção, numa primeira fase, previa a realização de seis filmes de enredo, adaptação de conhecidas obras literárias, e a contratação de notáveis figuras da cena portuguesa (o que influiu na deslocação é da empresa para Lisboa). Porem, para ir para a frente, sem meias medidas e com amplos meios técnicos e artísticos, era necessário reforçar substancialmente o capital da empresa, como o propunha Raul de Caldevilla. Os outros elementos associados não quiseram investir mais dinheiro, preferindo ficar, «à portuguesa», pelo remedeio. Não tinham nem mentalidade nem coragem para jogar uma grande cartada. O estúdio não se construiu. E, das seis fitas pleneadas para a arrancada, realizaram-se apenas duas, com menos recursos técnicos do que os previstos, num estúdio improvisado na grande abegoaria da Quinta das Conchas, que a empresa adquirira, situada exactamente no local onde mais tarde se instalaria a Tobis Portuguesa. O actor-realizador francês Maurice Mariaud, contratado por cinco anos, foi o responsável por ambas: Os Faroleiros (que chegou a ser vendida para diversos países europeus) e As Pupilas do Sr. Reitor, rodada em 1922, com exteriores filmados nos arredores de Vizela. Uma cópia deste filme foi encontrada em muito bom estado, em 1968, e oferecida ao Cineclube do Porto, que, mais tarde, a cedeu à Cinemateca Nacional. Na mesma altura apareceram alguns curtos fragmentos do negativo de Os Faroleiros (filme que parece ter-se perdido, pois dele não se encontrou rasto, além de uma razoável colecção de fotografias), assim como o negativo de um documentário sobre as termas portuguesas (e as respectivas legendas, em inglês, o que prova terem-se preparado cópias para o estrangeiro). Completamente inutilizado encontrou-se, também, um rolo em que fora registada a escalada, pelo exterior e a pulso, da Torre dos Clérigos, pelos Puortulanos, celebres trepadores profissionais. Esta escalada foi uma ideia publicitária, em grande estilo, para o lançamento de uma nova marca de bolacha. Ideia de Raul de Caldevilla, que atraiu o Porto inteiro. Os trepadores, depois de atingirem a cruz da torre, simularam tomar uma chávena de chá com bolachinhas, empoleirados lá no alto, ao mesmo tempo que lançavam sobre a multidão compacta, que viera admirar a façanha, uma chuva de papelinhos fazendo o reclame da nova marca de bolachas. Durante muito tempo se falou nesta escalada da Torre dos Clérigos, no Porto... e, por certo, muitas bolachinhas se comeram em resultado desta sensacional promoção publicitária, que o filme prolongava. Quanto ao filme As Pupilas do Sr. Reitor, devo adiantar que, por várias vezes, o romance de Júlio Dinis foi levado ao cinema. O mais curioso é que a versão de Leitão de Barros (de 1935) e a versão de Perdigão Queiroga (muito «folclórica» e realizada muitos anos mais tarde) não avançaram um passo ― sobretudo a de Queiroga ― em relação ao filme produzido em 1922 pela Caldevilla Films. O que, infelizmente, veio mostrar que, não obstante o Cinema ter progredido com o tempo, os nossos mais activos realizadores andaram para trás durante vários anos. A descoberta de As Pupilas do Sr. Reitor, de Maurice Mariaud, veio revelar que este filme (apenas citado em algumas histórias do cinema português) tinha uma qualidade comparável à das produções correntes que nos vinham de outros países com cinematografias mais adiantadas. De notar a fluência da narrativa (não obstante tratar-se, ainda, de uma ilustração a par e passo da obra literária); o acerto dos inúmeros raccords; a excelente fotografia (mesmo nos interiores). Tendo sempre presente que o filme foi feito em 1922, há também particularidades que não deixam de surpreender e que revelam um saber do ofício incontestável: profundidade de campo, permitindo duas acções independentes no mesmo «plano» (ex.: visita do Reitor a uma casa da aldeia, vendo-se, simultaneamente, o que se passa dentro de casa e, através da porta aberta, a bulha de dois garotos engalfinhados lá fora); utilização de alguns «planos» simbólicos (ex.: o desmoronar de um castelo de cartas quando Margarida verifica que Daniel não a reconhece); efeito de suspense cómico, na história do frade comilão sucintamente contada em imagens (história que fica interrompida pelo sono do Dr. João Semana, quando este a recorda pela primeira vez, e é retomada e concluída, mais tarde, na festa em casa de Daniel); sobriedade de representação de alguns velhos actores de teatro, como Manuel Oliveira, Eduardo Brazão e Duarte Silva. A visão actual desta fita, muito pouco conhecida, vem colocá-la num lugar muito mais importante do que aquele que se lhe atribuía E mais nos faz lamentar que Os Faroleiros se tenha perdido. Tratava-se de uma história da autoria de Maurice Mariaud em que o realizador figurava também como intérprete. A fotografia, tal como a de As Pupilas, era de Victor Morin. A Caldevilla Films tinha também uma secção de documentários. Falámos já nas Termas Portuguesas e em Chá nas Nuvens (a escalada à Torre dos Clérigos). Merece também referência O 9 de Abril, documentário de grande interesse histórico, muito pormenorizado, de que se destacam alguns aspectos curiosos: a chegada do Marechal Joffre; a passagem do Presidente da República, membros do Governo de 1921, deputados e chefes das Forças Armadas; a multidão compacta ao longo do percurso; os aspectos de Leiria e a chegada à Batalha do corpo do Soldado Desconhecido. Dois filmes (pelo menos) documentam a transladação de Lisboa para a Batalha do corpo do Soldado Desconhecido, a que o povo de Lisboa assistiu em peso. No cortejo encorporaram-se também contingentes das forças armadas portuguesas e da marinha de guerra da França, da Inglaterra, da Itália e dos Estados Unidos, assim como estudantes universitários, associações civis, representantes do Clero, grupos de escoteiros, bombeiros, etc. Um desses filmes, realizado pelos respectivos serviços da Caldevilla Films, foi estreado no Central, de Lisboa, em 13 de Abril; o outro passou, ao mesmo tempo, no cinema Condes. O 9 de Abril, da Caldevilla Films (cópia positiva em muito bom estado e uma grande parte do negativo) está, presentemente, na posse do Cineclube do Porto (esperemos que devidamente acautelado). A Caldevilla Films, como a Fortuna Film, como a Invicta Film iria extinguir-se. Foi nesse ano fatal de 1923 que Rino Lupo realizaria, isoladamente, Os Lobos, salvo erro com capitais portuenses, segundo a peça de Francisco Lage e João Correia de Oliveira. O filme obteve grande êxito, vendeu-se para França, Itália, Roménia e Brasil e ganhou, com o tempo, um certo valor mitológico que não corresponde inteiramente ao seu valor real. A fita está carregada de simbolismo e de presságios, sublinhando, à maneira do cinema nórdico, o dramatismo da intriga que se desenrola no meio de uma rude natureza. Os Lobos afigura-se-me uma obra com inegáveis qualidades, certamente invulgares no cinema português da época, mas sobrevalorizadas com o decorrer dos tempos. À câmara trabalhou um português: Artur da Costa Macedo, cuja competência ficou bem patente. 

Informação retirada de Breve História do Cinema Português (1896-1962) de Alves Costa

História do Cinema em Portugal - Tempo de transição (1924-1931)


O cinema português vai entrar em eclipse. Mas ainda dá tempo para se fundar uma nova empresa, Pátria Film, da responsabilidade de Henrique Alegria, que abandonara a Invicta, e Raul Lopes Freire, exibidor e importador de filmes. A nova empresa produzirá apenas O Fado, dirigido por Maurice Mariaud, e Aventuras de Agapito, uma farsa realizada por Roger Lion. Alguns dos estrangeiros que vieram trabalhar para Portugal ainda se conservarão entre nós por mais algum tempo. Mas a «época do cinema português feito por estrangeiros» (muitas vezes mais bem ambientado e mais português do que muito cinema nacional feito posteriormente por portugueses ― e isto é uma das mais curiosas características da produção que vai de 1918 a 1924) tinha chegado ao fim . Seguir-se-á um período pobretana em que predominam a falta de recursos, o amadorismo, a indigência criadora... e um certo oportunismo. É assim que Rino Lupo arranja uns dinheiros para fazer uma Fátima Milagrosa e um José do Telhado extremamente incipientes, e o escritor e jornalista Reinaldo Ferreira funda a Reporter X Film que produzirá, com a colaboração técnica do operador Maurice Laumann, quatro curtas metragens cómicas e uma longa metragem inspirada no assassinato da actriz Maria Alves: Taxi 9297, aproveitando a repercussão que teve esse crime ocorrido em Lisboa. 

O eclípse dá-se, efectivamente. Até que um belo documentário dramático: Nazaré, Praia de Pescadores, realizado por Leitão de Barros (com fotografia de Artur Costa Macedo) vem trazer uma réstea de sol: luz de esperança no negrume em que tinha caído a cinematografia portuguesa. De Nazaré, Leitão de Barros parte para o seu primeiro (e talvez o mais conseguido) filme de enredo e longa metragem, com argumento de António Lopes Ribeiro, jornalista e crítico de cinema que iniciara a crítica de filmes num jornal diário, o «Diário de Lisboa», e fora seu assistente em Nazaré. Maria do Mar, documentário romanceado da vida dos pescadores daquela praia, aponta para um género em que o cinema português poderia ter encontrado caminho fértil e motivador. Manuel de Azevedo, no seu ensaio Perspectiva do Cinema Português, diria deste filme, belo e prometedor, estas justas palavras: «Maria do Mar, com excelente fotografia de Manuel Luis Vieira e Salazar Diniz, ficou como exemplo isolado de que o cinema português esteve mais próximo de se afirmar quando os nossos realizadores nos deram a realidade nacional através do seu próprio temperamento do que através da adaptação de temas literários nacionais, transpostos para a tela por estranhos, possuidores ou imitadores de estilos estrangeiros.» Noutro passo do seu livro, Manuel de Azevedo acrescentaria: «Maria do Mar ainda hoje é das obras de cinema mais genuinamente portuguesas, um claro exemplo de que o documentarismo teria sido um caminho seguro para os nossos realizadores, quer enveredassem, mais tarde, no seu natural desenvolvimento, pelo naturalismo poético e simbólico dos mexicanos ― especialmente de Emílio Fernandez ― quer buscassem o realismo novo que os italianos nos deram após 1945.» Acrescentemos que Leilão de Barros tinha sido, na altura, muito impressionado pelo cinema soviético que tinha podido ver. Impressão que ficou pela rama e não pelo sentido social, interveniente, político dos filmes de Eisenstein ou Pudovkine. Em Maria do Mar sobressai, sobretudo, a anedota e não tanto a condição social da gente da Nazaré, o drama constante da sua existência desprotegida. No entanto, o filme tem momentos impressionantes e uma saudável frescura, a temperar a trágica progressão dos acontecimentos. Não fora a incapacidade de limar algumas excrescências, Leitão de Barros teria atingido um ponto ainda mais alto. E, pela primeira vez, e em evidência, aparece o rosto autêntico do povo trabalhador da beira-mar, a pele queimada pelo sol, as rugas autênticas dos velhos, as mãos calejadas. Entre os intérpretes (amadores, uns, profissionais do teatro, outros) a pequenina-grande Adelina Abranches confunde-se com a gente da Nazaré num desempenho de prodigiosa autenticidade. Dá-lhe réplica brilhante a Perpétua, mulher do povo que nunca havia sonhado representar e muito menos ao lado da maior artista que jamais teve o Teatro Português. A bem dizer, a Perpétua não representou. Com aquela capacidade espantosa que o povo tem para se transferir para «personagens» que se lhe assemelhem, esta mulher foi um espanto, tal a força, a veracidade, a espontaneidade que emprestou ao seu «papel». Maria do Mar data de 1930. Foi ainda nesse ano que Leitão de Barros fez Lisboa ― crónica anedótica de uma Capital, que é, de certo modo, o espelho da Lisboa dos anos trinta, vista com enlevo e com divertido sentido do humor. Todas as esperanças se puseram, então em Leitão de Barros. 

O cinema, em Portugal, tornara-se uma espécie de actividade amadora ou artesanal. Cada filme é uma aventura. Mas 1930 parece trazer ânimo a muita gente para correr a sua aventura. João de Almeida e Sá roda um belo documentário com pretensões vanguardistas: Alfama, Gente do Mar. Lopes Ribeiro faz um pequeno filme coreográfico: Bailando ao Sol (que foi um fracasso). Aníbal Contreiras realiza Vida de Um Soldado, a que chama «documentário reconstituído» (outra desilusão). António Leitão apresenta uma Castelã das Berlengas que mal chega ao público de tão má que é. Chianca de Garcia faz Ver e Amar em jeito de filme amador. E Maurice Mariaud, em colaboração com Eduardo Malta, filma Nua, com a jovem Saur Benafid, que, à falta de melhor, tinha um corpo bonito. A branda censura da época ainda permitiu que se mostrasse desnudado. Tudo não passa de um rosário de frustrações. O sonoro está prestes a bater-nos à porta, o que tornará essas aventuras ainda mais difíceis e contingentes. E o público desinteressa-se completamente por uma Portuguesa de Nápoles e uns Campinos com Maria Lalande que são, entre nós, o triste estertor do cinema mudo. É por essa altura que se faz uma experiência inédita: um filme de animação: Lenda de Miragaia, em silhuetas animadas, devido a Raul Faria da Fonseca e António da Cunha. Filme, aliás, de que ninguém se lembra.  Entretanto ― sem que se desse muito por isso ― tinha surgido Manuel de Oliveira: um jovem desconhecido nos meios cinematográficos (já com tendência a centralizarem-se em Lisboa) que tinha aparecido lá para as bandas do Porto. Mas já lá iremos. Permitam-me o parêntesis que se segue. 

Informação retirada de Breve História do Cinema Português (1896-1962) de Alves Costa

História do Cinema em Portugal - Imprensa cinematográfica e primeira associação de cinéfilos


Ao longo de todo este tempo, tinha-se criado, também, uma imprensa cinematográfica. A primeira publicação exclusivamente dedicada ao cinema aparece em Lisboa em Março de 1917. Intitula-se «Cine Revista» e durará até 1924. O cinema nacional merece-lhe uma atenção constante assim como os progressos que se vão operando nas técnicas cinematográficas. É ali que encontramos as primeiras referências ao cinema de animação. Outra revista que marcou uma posição importante na imprensa cinematográfica portuguesa foi «Porto Cinematográfico», fundada por Alberto Armando Pereira em 1919 e que só viria a extinguir-se em 1925. Também esta revista prestou muita atenção ao filme português, a par de uma vultosa informação sobre a actividade cinematográfica em todo o mundo. Uma parte importante da revista era dedicada a crítica de filmes e a biografias de artistas de cinema. Ainda no Porto, outra revista, fundada por Roberto Lino em 1923, viria a tomar uma posição de relevo na defesa do cinema nacional, acompanhando de perto as actividades da Invicta Film e o espectáculo cinematográfico na cidade do Porto, sem, no entanto, deixar de fornecer larga informação sobre as cinematografias estrangeiras. «Invicta Cine», assim se intitulava a revista, teve uma vida muito prolongada, pois viria a publicar-se semanalmente, com toda a regularidade, até 1936. Outras publicações, entretanto, apareceram e desapareceram por dificuldades económicas. Dentre estas, a mais interessante foi sem dúvida «De Cinematografia», fundada no Porto por Fernando Pamplona e Cunha Reis quando ainda frequentavam o curso dos Liceus. Outra, que se salientou pelo seu patriotismo delirante e já aqui citada, foi a «Cine Lisboa.» Editado pela empresa de «O Século», aparecerá em 1928 o «Cinéfilo», semanário de grande popularidade que iria publicar-se até 1939. Também esta publicação deu toda a sua atenção ao cinema português e apoiou consideravelmente, como o fazia a «Invicta Cine» e como já o haviam feito «Cine Revista» e «Porto Cinematográfico», o espectáculo cinematográfico em Portugal e a promoção do Cinema. Foi, no entanto, menos pronta a apoiar o cinema sonoro do que a «Invicta Cine», do Porto, e a «Imagem», que apareceria em Lisboa, com grande êxito, em princípios de 1930 (dirigida por Chianca de Garcia, tendo como redactor principal José Gomes Ferreira). Foi também em 1930 que apareceu o jornal «Kino», fundado e dirigido por António Lopes Ribeiro. O primeiro número sai no 1.º de Maio e é propriedade da Renascença Gráfica, S. A. R. L. O jornal luta por um cinema nacional, pugna pela construção de um estúdio devidamente equipado para a realização de filmes sonoros, assume atitudes polémicas e, à data da implantação da República em Espanha (1931), António Lopes Ribeiro, tomado por um entusiasmo que depois transferiu para o campo oposto, virando salazarista e legionário, escreveria em artigo de fundo de «Kino»: «Espanhóis! Aproveitem esse fogo sagrado que ora vos vai na alma. Transmitam-no ao écran (...) para que alguma coisa possa levar e contagiar ao mundo o vosso exemplo e o vosso entusiasmo. (...) Vocês nunca tiveram cinema (...) mas há entre vocês quem saiba o que isso é: Luís Buñuel. Vão buscá-lo a Paris como foram buscar Marcelino Domingo e Indalecio Prieto. Nada de Benitos Perojos! » De outras revistas que apareceram mais tarde, falar-seá a seu tempo. Quero apenas registar que foi a partir do entusiasmo de alguns dos responsáveis pela revista «Invicta Cine» que se criou, no Porto, a primeira associação cinematográfica, pioneira do futuro movimento cineclubista. Essa Associação dos Amigos do Cinema foi fundada em 1924 e tinha por objectivos: «defender o cinema nacional, moralizar o cinema por meio da palavra escrita ou falada, fomentar o entusiasmo pela Arte do Silêncio e produzir películas logo que a situação financeira o permitisse». A Associação durou alguns anos, mas a sua acção foi limitada. Realizou um ou outro colóquio, distribuiu prémios aos exibidores que apresentaram melhores filmes e produziu um pequeno documentário (creio que filmado por Maurice Laumann). Os cineclubes ainda vinham longe. E os que, muitos anos mais tarde, iriam criá-los e dinamizá-los, andavam ainda a jogar o pião. 


Informação retirada de Breve História do Cinema Português (1896-1962) de Alves Costa

História do Cinema em Portugal - Manuel de Oliveira - A sua primeira obra «Douro, Faina Fluvial»


1. Era uma vez... 
Lá para os fins dos anos vinte, António Lopes Ribeiro, que já andava nas lides cinematográficas como crítico de filmes nas páginas do «Diário de Lisboa», viu por acaso, num laboratório de Lisboa, parte de uma fita que ali fora mandada para revelar. Surpreendido e entusiasmado com o que vira, quis saber de quem era. Disseram-lhe um nome. Era-lhe desconhecido. Deram-lhe uma direcção e um número de telefone. Era no Porto. Procurando contactar o autor do filme, soube que ele chegaria a Lisboa no dia seguinte integrado num grupo de desportistas que vinham participar no Campeonato Nacional de Atletismo. Foi esperá-lo. E assim se deu o encontro entre os dois à saída da gare do Rossio. (Os comboios do Porto ainda não ficavam em Santa Apolónia). Lopes Ribeiro foi direito ao fim. Falou do seu entusiasmo pelo filme e do seu desejo de o incluir no espectáculo cinematográfico que estava a organizar para os participantes do Congresso Internacional da Crítica a realizar, dali a pouco, na cidade de Lisboa. Foi insistente e persuasivo: era preciso, era indispensável, concluir o filme rapidamente. 

O jovem atleta mal podia acreditar no que ouvia. A surpresa intimidava-o. Uma oportunidade destas nunca ele sonhara poder surgir-lhe. No seu foro íntimo, exultava; mas, cauteloso, punha reticências: que ainda havia material por revelar; que a montagem ainda ia levar o seu tempo... Lopes Ribeiro foi teimoso e peremptório: o filme tinha de estar pronto à data do Congresso. E assim entre ambos ficou assente. O filme em questão era Douro, Faina Fluvial. No dia seguinte a excitação do nóvel cineasta comprometeu a actuação do desportista. Incapaz de se concentrar, nunca ele fizera provas tão más. Foi um desastre. Este moço de vinte anos era Manuel de Oliveira. Se o seu nome era ignorado por Lopes Ribeiro e desconhecido nos meios cinematográficos, a verdade é que o não era nos meios desportivos. Manuel de Oliveira foi campeão de salto à vara e, nos famosos espectáculos anuais do Sport Club do Porto, executava, com seu irmão Casimiro, um arriscado número de trapézio voador. Também, por essa altura, o automobilismo o apaixonava, tendo vindo mais tarde a participar em corridas internacionais. Marcou destacada presença nas corridas de Vila Real e da Gávea, no Brasil, onde ganhou um dos circuitos. Se abandonou o atletismo quando começou a interessar-se pelo cinema, só abandonaria as corridas de automóveis quando se casou. Entretanto tirou o «brevet» de piloto aviador. Automóveis de corrida e aviões eram, talvez, a alternativa perante as dificuldades que sempre enfrentou para fazer cinema e através dele se exprimir. 

2. Voltemos uns anos atrás. Houve em tempos, quase no tôpo da Rua 9 de Julho 4, no Porto, em terreno sobranceiro à rua, um grande palacete meio oculto por duas frondosas tílias. O acesso fazia-se por um largo portão de ferro que abria para uma rampa que levava à moradia e à pequena unidade fabril anexa. Ambas pertenciam a Francisco José de Oliveira, industrial empreendedor a cuja iniciativa se deve a primeira fábrica portuguesa de lâmpadas eléctricas, a primeira fábrica nacional de artigos de malha e o aproveitamento hidro-eléctrico do rio Ave, no Ermal. Terceiro filho desse industrial, foi naquele palacete que, a 10 de Dezembro de 1908, nasceu Manuel de Oliveira, de nome de baptismo Manuel Cândido (Pinto de Oliveira de apelidos). De seu pai herdou, em certo sentido, a imaginação, a persistência e o poder criador. Mas não criou preconceitos de classe, embora fossem um tanto distantes as relações dos trabalhadores com o filho do patrão Seria justamente para o mundo do trabalho na beira-rio que seus olhos iriam voltar-se, fixando em imagens cinematográficas a viva expressão do esforço quotidiano do Homem, irmanado com a máquina e o animal, na árdua faina de ganhar, com autêntico suor, o magro e amargo sustento de cada dia. Como aconteceu com muitos jovens da sua geração, o cinema apaixonou-o desde muito novo. 

Era uma aventura fascinante a que então se vivia, dia a dia, face ao écran, sem interditos. Primeiro, era o mundo inteiro que se abria na nossa frente, o passado e o presente, o drama e a comédia, o fantástico e o sonho, ali, no rectângulo iluminado das salas escuras dos cinemas onde todas as noites podíamos identificar-nos com os «heróis» das fitas. Depois, era uma nova arte, uma nova forma de expressão que brotava e evoluía vertiginosamente na nossa frente. Aos dezasseis anos, Manuel de Oliveira desejou entrar para o cinema, como actor cómico ou burlesco. Outro qualquer, com a sua bela figura (as mocinhas voltavam-se quando com ele cruzavam na rua) teria desejado ser Rudolfo Valentino ou Ramon Novarro. Na realidade aquele juvenil anseio foi efémero ― depressa substituído pelo irresistível desejo de fazer cinema. Por essa altura, Rino Lupo veio para o Porto terminar as filmagens de Fátima Milagrosa. Aqui abriu uma Escola de Actores de Cinema para arranjar algum dinheiro e complacentes figurantes. Manuel de Oliveira foi dos primeiros a inscrever-se (com o pseudónimo de Rudy Oliver ... ), menos com a ideia de vir a ser galã de cinema do que a de saber como era o cinema «por dentro», figurando no filme de Rino Lupo. Por ali nada aprendeu. 

As lições ia-as recebendo de outro lado, na «universidade do cinema» que, para o aluno atento, eram os écrans do Trindade, do Olímpia, do Passos Manuel e do Salão High-Life: as lições do expressionismo alemão, do realismo de Pabst e Lupu Pick, de alguns vanguardistas franceses, da imensa força dramática de Mãe, de Pudovkine ou da Joana d’Arc, de Dreyer, da violência demolidora de Eric von Stroheim, da inquietante grandeza dos nórdicos Stiller e Sjostrom... Quanto a livros teóricos, sobre linguagem e estética cinematográficas, creio que nunca leu nenhum. Um dia, foi isto em 1929, Manuel de Oliveira conseguiu que o pai lhe emprestasse uns escudos e comprou uma máquina de filmar de 35 mm, portátil, com corda para trinta metros de fita. Estava decidido a fazer o seu primeiro filme, cuja ideia tinha longamente amadurecido. O trabalho ribeirinho, as pontes, o bairro do Barredo, o rio, fascinavam-no. Escreveu uma planificação muito pormenorizada para reter no papel o filme que se construía dentro de si. A sugestão da linha mestra viera-lhe de um filme de Ruttmann, Sinfonia duma Capital ― 24 horas da vida de uma cidade, que tinha visto tempos antes. Mas o Douro, Faina Fluvial, nasceria como obra autónoma e original. Um crítico italiano, Ugo Csiraghi, escreveria muitos anos mais tarde («L’Unità», de 8 de Setembro de 1976): «Nesta curta-metragem, realizada em 1930, há ressonâncias do melhor documentarismo europeu, de Ivens aos soviéticos, de Ruttmann a Grierson, mas revistas e elaboradas com tal força e originalidade que fazem de Manuel de Oliveira um artista que só a si próprio se assemelha.» Manuel de Oliveira não sabia ainda como manejar uma máquina de filmar. Para operador convidou, então, um amigo, António Mendes, guarda-livros de profissão, grande apaixonado por fotografia. E deitaram mãos à obra, aos poucos. Foi um autêntico trabalho de amadores, mas feito com a proficiência de profissionais experimentados. Foi ainda António Mendes ― que se revelou um operador excepcional mas nunca quis trocar a estável profissão de guarda livros pela incerta profissionalização cinematográfica ― quem revelou uma grande parte do negativo de Douro, Faina Fluvial, servindo-se de meios rudimentares num laboratório improvisado numa das dependências da fábrica dos Oliveiras. 

A certa altura, a operação revelou-se extremamente difícil, razão pela qual outra parte do filme foi mandada para um laboratório de Lisboa. Muitos anos mais tarde, foi ainda numas dependências da velha casa da Rua 9 de Julho, hoje demolida, que Manuel de Oliveira instalou um pequeno estúdio, muito bem equipado com material que mandou vir expressamente de Itália, num momento em que pensou tornar-se autónomo, com a vaga esperança de criar um núcleo de produção onde outros pudessem também vir trabalhar, fugindo, assim, aos altos custos dos laboratórios de Lisboa. Foi lá que ele fez a montagem de Acto da Primavera, O Pão, e Caça (imagem e som). E ali enterrou muito dinheiro em bom material técnico e no isolamento de uma sala para gravações. Tudo seria obrigado a vender num momento difícil da sua vida ― que não foi sempre tão «de rosas» como tantas vezes se quer fazer crer... O advento do sonoro tinha acabado de dar-se, mas Douro, Faina Fluvial era ainda um filme mudo e foi assim que foi exibido no Salão Foz, em Lisboa, no decorrer do Congresso Internacional da Crítica. Esta ante-estreia foi um escândalo. Perante a surpresa dos congressistas estrangeiros, os espectadores portugueses, na sua maioria, vaiaram ruidosamente o filme. 

O tema, o ritmo, a montagem rápida de algumas sequências, irritaram o público (em grande parte selecto e burro). A projecção foi sublinhada por constantes assobios e terminou com uma estrondosa pateada. Ao intervalo e, ainda, já terminado o espectáculo, muitos espectadores e alguns dos críticos (!?) portugueses ferviam de indignação: «um sem jeito aquelas imagens vertiginosas! uma vergonha mostrar a estrangeiros aquelas mulheres enfarruscadas, com carretos de carvão à cabeça, de pé descalço... aquelas nojentas vielas do Porto... aqueles prédios leprosos do Barrêdo... «(Parece que ninguém se indignou por existirem aquelas desumanas condições de trabalho dos carregadores do porto... parece que ninguém se indignou por se viver ainda em péssimas condições de habitação e salubridade no velho, degradado e populoso bairro do Barrêdo...). Manuel de Oliveira, que ninguém ali conhecia, andava no meio daquela gente. Socavam-lhe os ouvidos os indignados desabafos. E sorria. O sentido do humor foi sempre uma das suas qualidades. 

3. Ao contrário das reacções desfavoráveis que o filme tinha levantado entre portugueses, o reputado crítico francês Emille Vuillermoz não tardaria em publicar, no «Temps», um artigo sobre Douro, Faina Fluvial, em termos muito lisonjeiros. A certo passo desse artigo, escreveria: «Nunca o patético novo da arquitectura do ferro e a poesia eterna da água haviam sido traduzidos com tanta força e inteligência.» («Le Temps» ― 3/10/1931). Depois, veio Avelino de Almeida (que foi director da revista «Cinéfilo») remar, quase a medo, contra a maré da generalizada nacional-indignação. Abertamente vieram defender o filme: José Régio, na «Presença», e Adolfo Casais Monteiro, na revista «Movimento.» a estes dois poetas e a mais meia dúzia de amigos mostrara Manuel de Oliveira o seu filme depois da «corrida» que tinha levado em Lisboa. Destes recebeu, naquela altura, as únicas manifestações de apreço e encorajamento. 

E a fita voltou para as latas onde ficou «esquecida» por uns anos. Douro, faina fluvial viria finalmente a público, no circuito comercial, por acordo com H. da Costa, para servir de complemento ao filme Gado Bravo, de que aquele ex-distribuidor de filmes era produtor. Foi isso em 1934. O filme tinha sido sonorizado, o que lhe alterou ligeiramente o ritmo. Quando da sua primeira apresentação no Porto, no S. João-Cine, acolheram-no com palmas espontâneas e calorosas. Depois... o tempo foi passando, e Douro, faina fluvial resistiu. O que só acontece com as autênticas obras de arte. 

Em Douro, faina fluvial Manuel de Oliveira não se limitou a pousar o olhar sobre a vida e a faina ribeirinhas. Na descrição do trabalho e das duras condições de vida dos trabalhadores da beira-rio há implícita uma denúncia. Mas há também um intenso sopro de poesia, a captação de uma profunda palpitação humana. O rio, a ponte, os cais, as ruelas, os negros recantos do Barredo e da Ribeira são o cenário e o lugar onde aqueles homens e mulheres vivem e labutam. Mas o rio, a ponte, os cais, as ruelas, pulsam e vivem também, ao ritmo das horas, tratados por uma câmara inquieta, lúcida, observadora, atenta, respeitadora... que não procura o «pitoresco», antes dele se esquiva para descobrir e registar uma realidade social. Toda a enorme força de Douro, faina fluvial está nessa realidade colhida ao vivo sem disfarces, «em que a moderna poesia do ferro e do aço, a tonalidade das horas, a alegria e a miséria do homem sócio do animal na luta pelo pão de cada dia ― tudo, ao longo de um dia de actividade na margem do Douro, nos é dado com uma verdadeira grandeza» (José Régio). 

Rodrigues de Freitas, colaborador de «Presença» e autor de um conto que serviu de inspiração a Manuel de Oliveira para o Aniki-Bóbó, escreveria na revista «Movimento»: (...) «Nasce o dia e recomeça a faina; tudo ali surge em movimento, no ritmo da azáfama e das horas que vão correndo; o trabalho começou; e cresce e a vida explude em acção, em força e luta; serena chegou a hora do almoço e do descanso ― e há como que uma síncope. Depois, de novo a faina volta..., a vida retoma a intensidade das primeiras horas do dia, até que o cansaço chega, os homens vergam e as pernas fraquejam, enquanto que na natureza, à volta, desce a calma e a solidão. O artista-realizador, poeta, vai visualizando os estados de alma, no homem e na natureza; os dois elementos decorrem fundidos, em ritmos correspondentes, em permanente simpatia. Acompanhando-se nas horas que deslizam, a vida do rio e a do homem, penetram-se, completando-se. Douro, faina fluvial aparece-nos assim como um filme de essência profundamente poética, mas não é só isso. O filme abandona aqui e ali aqueles estados de alma de que falei, e aponta, frisa, marca, quase discute, problemas de ordem social. Façam presente, na memória, os paralelos entre o trabalho do homem e o da máquina e veja-se, de facto, se não há ali dialéctica social... Filme de inquietação e significação. Toda a obra que significa é ― e Manuel de Oliveira dá-nos uma obra de arte autêntica, pelo mundo de sugestões que provoca, emoções e ideias que desperta. (...) Um filme que vive pelos elementos essenciais da arte: criação e expressão, neste caso, pela sua visão e pela sua montagem.» 

Por seu turno, na «Presença» (n.º 43 de Dezembro de 1934) o poeta José Régio escreveria: «O Douro é uma pequena obra-prima; é um milagre não só de sensibilidade e inteligência ― também de persistência, independência e vontade, dons que tanto nos faltam (...) Precioso como documentário, o Douro excede e em muito o valor de um mero documentário. Nem um documentário se volve em obra de arte senão na medida em que, sem deixar de documentar o que pretende documentar, é, também, documento de um temperamento de artista. Manuel de Oliveira é artista e poeta, no alto sentido em que, afinal, estas duas palavras são sinónimas. E não é tão fácil de ver que era isso o que ainda não aparecera no nosso cinema? Conseguir boas imagens e uma boa montagem segundo processos mais ou menos conhecidos, em mira a efeitos de agrado mais ou menos seguro, é, talvez, relativamente fácil; porque é questão de aprendizagem e experiência. (...) Mas o que já deixa de ser matéria de aprendizagem para ser manifestação duma vocação própria, é conseguir esse halo poético, o transmitir essa vibração humana, que revelam realmente artista (tão artista como o mais sincero cultor de qualquer outra arte) o realizador dum filme. E eis, entre nós, a grande novidade do Douro: ser uma obra de arte.» 

Informação retirada de Breve História do Cinema Português (1896-1962) de Alves Costa