No dia 12 de Novembro de 1896, portanto a menos de um ano de distância da primeira sessão pública com o «cinematógrafo Lumière», um português, Aurélio da Paz dos Reis, conhecido e estimado comerciante portuense e grande amador fotográfico, apresentava, por seu turno, no Teatro Príncipe Real, do Porto, os primeiros filmes portugueses. Pouco se sabe sobre o aparelho que Paz dos Reis utilizou para filmar e projectar as suas fitas. Algumas vezes se afirmou ter Paz dos Reis ido a Paris e conseguido dos irmãos Lumière a venda de um «cinematógrafo». Nada o confirma. Bem pelo contrário. No aparelho dos Lumière só passavam películas com uma perfuração circular de cada lado do fotograma. Os filmes de Paz dos Reis (de que possuo dois fragmentos de um deles), em película da marca «Eastman», apresentam quatro perfurações quadrilongas de cada lado do fotograma. Em face desta circunstância concludente, levantam-se duas hipóteses. Ou Paz dos Reis viu o aparelho Lumière (ou alguma das suas imitações, que já as havia quando se diz ter ele ido a Paris) e mandou construir aqui uma máquina semelhante a que deu o nome de «kinetographo portuguez», coisa a encarar com reservas mas plausível se quisermos acreditar no que se lê no Programa da sessão realizada em Braga em 21 e 23 de Novembro de 1896: «O kinetographo é um aperfeiçoamento dos aparelhos denominados animatógrapho, cinematógrapho, vitagrapho, etc. que há perto de um ano teem obtido o maior dos sucessos em todas as capitais onde se teem exibido»; ou trouxe de Paris um outro «cinematógrafo», como o que foi patenteado pelos irmãos Werner com o nome de «cinégrapho» mas designado, também, tempos depois, por «kinetógrapho». Esta segunda hipótese é mais aceitável e é para ela que se inclina A. Videira Santos, que procurou investigar o assunto e dele trata no seu livrinho Paz dos Reis ― cineasta ― comerciante ― revolucionário. Mas há aqui um facto curioso. Aurélio da Paz dos Reis, ao anunciar as suas «projecções luminosas a luz eléctrica, em tamanho natural, de photographia animada», cita o cinematógrafo e o vitagrafo e refere o nome de Edison como inventor do cinema. Não cita o nome dos Lumière. O que me parece estranho, embora a citação do nome de Edison, mundialmente famoso e admirado, pudesse ter sido um expediente publicitário De resto, na pré-história do Cinema, há ainda muita coisa imprecisa, de difícil investigação e contraditória. Comparemos, agora, algumas datas. Os Lumière apresentam o seu cinematógrafo, em Paris, em 28 de Dezembro de 1895. Quase ao mesmo tempo que Edison começava a vender o seu deficiente projecting kinetoscope, os Werner registam o seu cinégrafo em Fevereiro de 1896, que depois vendem com o nome de kinetógrafo. Só em Abril desse mesmo ano Edison apresenta o vitascope. Por sua vez, Paz dos Reis apresenta o kinetógrafo português em 12 de Novembro de 1896. Ora, se aceitarmos que Paz dos Reis tinha conhecimento dos novos aparelhos americanos, o facto de citar o vitagraph põe em causa a exactidão do que nos diz Georges Sadoul ― considerado uma autoridade em matéria de história do cinema ― a páginas 332 da sua Histoire Générale du Cinema ― vol. 1 ― L’invention du Cinéma. Diz Sadoul que, em 1896, tendo Edison começado a vender um projector a que chamou «projecting kinetoscope», Blackton, associado a um dos seus amigos, de nome Smith, tinha conseguido adaptar este aparelho a máquina de filmar e projectar, dando-lhe o nome de «vitagraph». Este mesmo nome seria dado, mais tarde, à Companhia produtora de filmes que os mesmos indivíduos fundaram. E Sadoul afirma que o primeiro filme feito com o «vitagraph» é datado de Novembro de 1897. Sendo assim, como é que Paz dos Reis, aqui em Portugal, já se refere ao «vitagraph» um ano antes?! Este simples pormenor vem provar como isto de datas e de prioridade de inventos, é ainda, muitas vezes, matéria nebulosa e incerta, por incertas e nebulosas serem frequentemente as fontes de informação. O mesmo se dá quanto à autoria de certos filmes primitivos, regra a que não fogem algumas obras atribuídas a Paz dos Reis, com a agravante de nem uma só se ter salvo. A única coisa sobre que não restam duvidas é que se chegou ao cinema, melhor ou pior, aqui, ali e além, na Europa e na América, quase simultaneamente, apenas com curtas ultrapassagens pelo caminho. Aurélio da Paz dos Reis nasceu no Porto em 28 de Julho de 1862. O pai era negociante, a mãe dirigia uma casa de modista. No Porto fez Aurélio os seus estudos, não chegando a completar o curso dos liceus. Não obstante seu avô ser miguelista ferrenho, as inclinações políticas de Aurélio da Paz dos Reis voltavam-se para a República, tendo participado nos acontecimentos do 31 de Janeiro, pelo que chegou a estar preso. Não se sabe ao certo se participou activamente na revolução ou se, apenas, o seu entusiasmo pelas ideias republicanas o levou a juntar-se aos revolucionários, que viriam a ser tragicamente dominados. Não há dúvidas, porém, de que participou em comícios republicanos. Assinalam os jornais da época que «no decorrer de um grande comício realizado próximo do Campo 24 de Agosto, em 1908, Aurélio da Paz dos Reis fez a entrega de um ramo de camélias a Bernardino Machado.» A Monarquia estava por um fio e a derrota do 31 de Janeiro não esfriara o seu republicanismo. Não foi, porém, como político que mais se destacou. No Porto era muito estimado pelo seu carácter, pelo seu trato, pela sua verticalidade e honradez de comerciante. Aqui criou e desenvolveu um negócio de sementes, flores e artigos de jardinagem. A sua «Flora Portuense» situava-se no local onde hoje existe a confeitaria Ateneia, na Praça da Liberdade, e era abastecida pelas plantas que cuidadosamente cultivava no quintal da sua residência, na Rua de Nova Cintra, 125. As suas culturas ficaram famosas e muitas das espécies que saíam do seu horto levavam Certificado de Origem. O floricultor Paz dos Reis, que chegou a ter um comércio de vulto e relações com horticultores franceses e holandeses, era também um grande amador fotográfico. Deste gosto pela fotografia viria o seu entusiasmo pelas imagens animadas logo que delas tomou conhecimento. E daí ter procurado imediatamente adquirir uma máquina de filmar e projectar, que teria trazido de França com alguns filmes Porque lhe chamou kinetógrafo português? Não se sabe. O certo é que Paz dos Reis rodou e projectou os primeiros filmes portugueses em 1896, quando o cinema dava ainda passos incertos e estava pouco seguro dos caminhos por que iria seguir no futuro.
Dos filmes de Aurélio da Paz dos Reis nada resta. O que torna ainda mais difícil estabelecer uma filmografia com exactidão. Como um dos raros elementos de referência ficou, felizmente, um programa da sessão realizada no Teatro de S. Geraldo, de Braga, em 21 e 23 de Novembro de 1896. Mas ali aparecem alguns títulos que não devem atribuir-se a Paz dos Reis, pois deve tratar-se dos filmes que teria trazido de França: Um boulevard-Paris, Manobras de Bombeiros, Lutadores Franceses, Dança Serpentina Loie Fuller e, possivelmente, também O jardineiro ― cena de um cómico irresistível (L’arroseur arrosé, de Lumière?). Coligindo elementos dispersos, A. Videira Santos, estabeleceu, no entanto, a seguinte lista: Chegada de um comboio americano a Cadouços ― A Rua do Ouro ― Azenhas do Rio Ave ― Jogo do pau ― Feira de S. Bento ― No jardim ― Saída do pessoal operário da Fábrica Confiança- Feira de gado na Corujeira ― Cortejo eclesiástico saindo da Sé do Porto no aniversário da sagração do Eminentíssimo Cardeal D. Americo ― Marinha no Tejo, saída de dois vapores ― O Zé Pereira na Romaria de Sto. Tirso ― A dança serpentina e ainda A caninha verde ― Rua Augusta ― Movimento e ruas de Lisboa ― Braga ― Coimbra ― Barcelos ― Senhor de Matozinhos ― Costumes de aldeia (oito títulos que foram colhidos na imprensa do Rio de Janeiro, que os indica como fazendo parte do reportório do «kinetógrafo português» em terras brasileiras, o que e aconselhável tomar com alguma reserva.) A estes, Félix Ribeiro, em A maravilhosa História da Arte das Imagens, acrescenta: Rio Douro ― Mercado do Porto ― Torre de Belém ― Avenida da Liberdade ― O Vira (títulos que devem encarar-se igualmente com reservas, pois alguns deles podem referir-se aos «quadros fixos» que Paz dos Reis levou ao Brasil.) Quanto ao filme A dança serpentina, referido por A. Vieira Santos (op. cit.) na filmografia que cuidadosamente procurou estabelecer, podem levantar-se algumas dúvidas. Por um lado, A. V. S. é peremptório na nota que se segue à indicação desse título (sem, no entanto, dizer como e onde recolheu as informações que presta): «Neste filme, a então na moda dança dos véus, foi executada por uma actriz brasileira que no Verão de 1896 interpretava no Porto um papel na peça de Schwalbach, «Os filhos do capitão-mor»: Cintra Polónio, que na altura contava 35 anos. A película teria sido filmada no quintal de Paz dos Reis, onde a actriz executou a dança celebrizada por bailarinas estrangeiras». Ora, no programa da sessão realizada em Braga está indicado o título Dança serpentina Loie Fuller. O próprio A. Videira Santos, em notas à filmografia de Paz dos Reis, diz que este filme é francês. Teria Paz dos Reis realizado um filme cópia deste? Videira Santos não o explica. O que se me afigura é que o filme referido no programa é um dos antigos filmes americanos dos kinetoscópios que passaram posteriormente para o cinematógrafo. A ele se refere Georges Sadoul: «Este filme foi apresentado em França com o nome de Dança da Loie Fuller e era interpretado por Annabelle, jovem dançarina da Broadway. Sabe-se que a dança serpentina, que tornou célebre Loie Fuller, era executada com a bailarina envolta em longos véus sobre os quais se projectavam fachos luminosos de várias cores, o que permitia evocar ora uma flor, ora uma borboleta. Sem estes efeitos coloridos a dança serpentina perdia muito do seu atractivo. Em face disso, os produtores encarregaram M.e Kuhn, especialista nestes trabalhos, de pintar, fotograma a fotograma, uma cópia de A dança de Annabelle (assim se intitulava o filme na América) para o transformar num filme colorido.» (Histoire Genérale du Cinema ― Vol. 1, pp. 250.) De que se trata, afinal? Do filme americano? De um plágio deste, feito em França? De um filme de Paz dos Reis em que Cintra Polónio, tal como Annabelle, imitava a Loie Fuller? Trata-se de dois filmes distintos? Como nada resta da obra de Paz dos Reis, difícil será averiguar. As projecções feitas em Portugal por Paz dos Reis ― talvez por deficiências técnicas ― não despertaram mais do que um momentâneo movimento de curiosidade. O dinheiro investido no «kinetógrafo português» e nos filmes realizados não foi recuperado. Paz dos Reis pensou, então, no Brasil e para lá partiu em 8 de Dezembro de 1896, com máquina, filmes e vistosos cartazes publicitários. No Rio de Janeiro, por circunstâncias várias, entre as quais uma chuva torrencial, o êxito não foi por aí além. Em Fevereiro já Paz dos Reis estava de novo no Porto, desiludido. Abandonando o cinema, voltou às suas flores e outras ocupações (fez parte de algumas vereações da Câmara Municipal do Porto). Em 1919, por ocasião da epidemia da pneumónica, morrem-lhe três dos seus quatro filhos. Foi um golpe muito duro que não deixou de pesar nos dias que se lhe seguiram. Doze anos mais tarde, a 19 de Setembro de 1931, acometido de congestão cerebral, morria Aurélio da Paz dos Reis, autêntico pioneiro do cinema português, aqui realizando filmes antes mesmo da Espanha, da Itália, da Rússia, da Suécia e da Noruega. «Se é certo que Paz dos Reis seguiu muito de perto os assuntos já tratados e que teria visto em França, o facto é que ninguém lhe pode negar a glória de ter sido o primeiro português a realizar filmes, numa altura em que o cinema era ainda quase desconhecido na maior parte do mundo.» 1 Infelizmente, não teve imediatos continuadores. Nem ânimo sobrou a Paz dos Reis para superar as primeiras desilusões. Começou demasiado cedo. E assim se perdeu a oportunidade por que passou o cinema português de nos legar alguma coisa sobre o nascimento da República cujos ideais Paz dos Reis abraçara desde muito novo. O cinema português nascia e morria naquele ano de 1896. Para só renascer alguns anos mais tarde.
Informação retirada de Breve História do Cinema Português (1896-1962) de Alves Costa
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