quarta-feira, 20 de julho de 2022

História do Cinema em Portugal - Os Anos Quarenta



1. Logo nos princípios de 1940 dois nomes novos aparecem no nosso nebuloso horizonte cinematográfico: Adolfo Coelho (Porto de Abrigo) e Armando Miranda (Pão Nosso). Não trazem nada de novo. Adolfo Coelho não volta à longa-metragem e faz muito bem. Pelo contrário, Armando Miranda insiste (para pior) com uma Ave de Arribação (1943), um segundo José do Telhado (1945), Capas Negras (1947), com Amália Rodrigues, e outras fitas que degradam mais do que enriquecem a cinematografia portuguesa. Por seu turno ― depois de ter posto a cantar,

à Varanda dos Rouxinóis, Madalena Sotto, uma desconhecida menina de Oliveira de Azeméis que do cinema viria a ser catapultada para o teatro, onde fez carreira ― Leitão de Barros tenta com Ala-Arriba acercar-se de novo da gente do mar. O filme, produzido pela Tobis Portuguesa com subsídio do S. N. I., sai-lhe desarticulado, «com personagens falsas saídas de museu etnográfico» (como dirá Manuel de Azevedo na sua Perspectiva do Cinema Português), ilustrando um conflito que escamoteia os problemas reais, quotidianos, dramáticos, prementes, dos pescadores poveiros. O argumento e os diálogos eram de Alfredo Cortez. Os intérpretes foram autênticos pescadores da Póvoa de Varzim. O sentido plástico de Leitão de Barros, o talento do dramaturgo e a autenticidade dos intérpretes não vieram a somar-se naquele resultado que poderia esperar-se. Foi pena.
Sempre presente e atento, a António Lopes Ribeiro não escapam as propícias circunstâncias que, devido à guerra mundial, se apresentam para a defesa comercial do filme português, com a menor concorrência estrangeira no mercado nacional. Decididamente põe em execução um projecto de produção contínua de que, a curto intervalo, saem três filmes: O Pai Tirano (1941), O Pátio das Cantigas (1942) e Aniki-Bóbó (1942).
O Pai Tirano, realizado por Lopes Ribeiro e O Pátio das Cantigas , realizado por Francisco Ribeiro, duas comédias ligeiras, esquemáticas, com um certo sentido de humor caricatural, apoiavam-se essencialmente na participação de actores com inconfundível personalidade e riqueza de imaginação (Vasco Santana, António Silva, Ribeirinho) colocados em situações que lhes permitiam tirar partido dos frequentes trocadilhos do diálogo. Estas duas comédias inserem-se no que poderíamos chamar «o cinema de bairro», em tom cor de rosa, que teria muitos continuadores. Assim «se foi inventando (como diz Manuel Pina em O Cinema ― Enciclopédia da 7.ª Arte) uma sociedade de gente simples, sã, alegre e trabalhadora, onde as únicas nuvens eram as inevitáveis paixões humanas». Mais tarde virá juntar-se a esta sociedade uma típica figura: o espertalhão à portuguesa, bem disposto, optimista, cheio de recursos, curto de escrúpulos, que não

é figura tão de ficção como isso. Existindo de facto e sempre gozando entre nós de simpatias especiais, voltaremos a encontrá-la ― já inserida noutro contexto ― no cinema moderno (Grande, grande era a cidade e Perdido por cem..., por exemplo).

O terceiro filme desta série de «Produções Lopes Ribeiro» coube a Manuel de Oliveira (em que o realizador teve alguma participação financeira nunca recuperada). Foi assim que ele pôde realizar o seu primeiro filme de enredo e longa metragem: Aniki-Bóbó, após dez anos de espera.

Inspirado num conto de Rodrigues de Freitas («Meninos milionários»), Aniki-Bóbó foi rodado quase totalmente em exteriores (na cidade do Porto), tendo à câmara António Mendes, que mais uma vez deu provas da sua extraordinária competência. A fita ficou concluída em fins de 1942. Quando da sua estreia, o realismo poético de Aniki-Bóbó e as subtis intenções do autor não seduziram o público tanto quanto seria lícito esperar. Uma certa dose de incompreensão marcou, também, muitas críticas da época. No entanto, Rui Grácio escreveria («Horizonte» 13/1/943): «Manuel de Oliveira articulou nesta história alguns dos elementos que constituem parte da vivência psíquica dos garotos daquela idade e daquele viver: o tédio de uma escola arcaica; o medo do polícia; as lendas que envolvem o mistério da morte; o jogo dos polícias e ladrões; o espectáculo sempre novo do comboio que passa. Não se põe o problema da criança. Tarefa difícil. Mais para louvar é a ousadia do cineasta portuense que tem ainda de lutar com a incompreensão de um público pouco disposto a recolher mensagens de ingenuidade e poesia.»

Essa incompreensão atinge o desvario na pena do comentarista do jornal «Cidade de Tomar» (24/1/943) que, indignado, escreverá: «A fita é uma infame cilada à inocência das crianças e à imprevidência dos pais. É uma verdadeira monstruosidade.» Fernando Fragoso, na «Vida Mundial» (7/1/943) espelha também a sua mentalidade e a sua cegueira: «Considerei desde logo a história de Aniki-Bóbó anti-comercial e demasiado literária (...) Procuramos convencer M. de O. que a sua história carecia de verdade humana e que, com outro desenvolvimento que unisse aquelas crianças em torno de uma boa acção, lhes faria perder o ar de “Dead End Kids” tripeiros com vantagem para o espectáculo e a acção construtiva de que o filme português não deve alhear-se.» Serão os poetas aqueles que melhor entenderão Aniki-Bóbó. Assim, António Botto escreverá («Os Sports ― 4/1/943): «De uma grande honestidade, com pedaços de límpido cinema, este filme dá o encanto das coisas despretensiosas e belas, no seu aprumo de simplicidade emotiva recortada duma intenção social irónica e popular.» Por seu turno, Adolfo Casais Monteiro terá estas palavras: «O caso de Manuel de Oliveira é único na nossa cinematografia. Tem o cinema na medula dos ossos, e o seu silêncio é o preço da autenticidade da sua vocação. Tanto Douro, Faina Fluvial como Aniki-Bóbó nos dão bem a medida dessa vocação e do que o cinema português podia ter ganho caso tivesse sido possível a Manuel de Oliveira exercer uma actividade regular. O seu caso é único porque ele é, até hoje, o único que parte da imagem cinematográfica e não tentou fazer da imagem uma ilustração de ideias “literárias”, vendo ao mesmo tempo no cinema uma forma de comunicação humana. (...) O seu sentido da realidade orienta-se simultaneamente para a verdade humana e para a pureza da imagem.» (Citado no «Programa» n.º 38 do Cine-clube de Estremoz).

Depois de Aniki-Bóbó, o cinema português, durante largos anos, não voltou a ter poesia. Mas voltou, frequentemente, à laracha do Parque Mayer, ao folclore de pacotilha, às lamechices do fado (com fado ou sem ele), à história moralizante e à «reconstituição histórica» (a que os espanhóis chamam com humor «cinema de barbas») . Para Manuel de Oliveira seguiram-se mais 14 anos de inactividade cinematográfica e de esquecimento. O filme viria a ser «ressuscitado» em 1954 pelo Cineclube do Porto e foi, para muitos, uma surpresa. Ali encontraram, com espanto, a antecipação do «realismo mágico» do cinema italiano do após-guerra. O mesmo espanto eu encontrei numa plateia francesa quando o filme foi exibido em Nice, numa Semana de Cinema Português ali levada a efeito muito mais tarde. Na altura em que o filme foi «ressuscitado», Manuel de Oliveira, solicitado a pronunciar-se sobre ele, diria: «Pretendi espelhar nos garotos os problemas do homem, problemas ainda em estado embrionário; pôr em oposição concepções do Bem e do Mal, o ódio e o amor, a amizade e a ingratidão; sugerir o medo da noite e do desconhecido; reflectir a atracção da vida que palpita em todas as coisas à nossa volta, contrastando com a monotonia do que é fechado, limitado por paredes, pela força ou pelo convencionalismo.»

Em 1944, Manuel de Oliveira acarinhou ainda o projecto, de fazer um filme que se intitularia Saltimbancos e que seria a pintura dramática e poética do mundo do Circo, visto, também, como o espelho ou o símbolo do mundo sem repouso em que vivemos. O projecto gorou-se mais uma vez. Desgostoso, Manuel de Oliveira desvia-se do cinema e aplica a sua atenção e as suas actividades noutros campos. Entretanto, outros filmes vão aparecendo. O que dá uma certa animação ao nosso panorama cinematográfico.


2. Artur Duarte reaparece com uma comédia: O Costa do Castelo, que é um êxito comercial, e António Lopes Ribeiro apresenta uma nova versão, ilustrativa mas bastante equilibrada, de Amor de Perdição, que, se não fez chorar os espectadores sensíveis tanto como a versão de George Pallu, ainda hoje (verifiquei-o numa reposição recente) exerce certa atracção sobre um público que continua a ser sensível a histórias lineares e românticas que o comovam. Lopes Ribeiro elaborou uma «planificação» muito direitinha, saltou com agilidade alguns escolhos da adaptação e encheu de acção as soluções de continuidade do romance... que ficou um bocado foto-novela, sem ofender Camilo Castelo Branco. Depois de Camilo, Lopes Ribeiro passará para André Brun, realizando (mesmo em cima da peça) A Vizinha do Lado. E enquanto Brum do Canto puxa à lágrima e ao milagre (Fátima, Terra de Fé) e à dignidade (Um Homem às Direitas) ― o que não deixa de nos recordar os filmes de Feuillade, para a Gaumont ― Artur Duarte prossegue, com A Menina da Rádio, num género que se destina a um razoável sector do público que, hoje, podemos comparar ao que, agora, faz o êxito dos filmes indianos... É a contar com esse público pouco exigente que outras fitas vão formando os degraus da nossa história cinematográfica. Negativos (quase sempre para ela), positivos (as mais das vezes) para os que os fazem, como é o caso de Henrique Campos, que se apresenta com Um Homem do Ribatejo e vai por aí fora em partos sucessivos «para servir o gosto do público com fitas lineares que toda a gente entende» (remoque do cineasta obviamente endereçado aos que, em 64/66, tiraram o nosso cinema da vil tristeza artística em que se encontrava). Por seu turno, Leitão de Barros ― dispondo de meios avultados ― realiza Camões (1946), em grande estilo e em dois «tempos»: uma primeira parte desenvolta e movimentada, uma segunda parte majestosa e pesadona ― obra irregular e exterior que, na altura, deu ares de coisa importante. Adolfo Casais Monteiro (e volto a citar um poeta) comentaria: «Leitão de Barros veio da pintura para o cinema e não conseguiu, talvez por nem sequer o ter procurado, vencer algumas limitações que daí resultam. Viu sempre os seus filmes como uma sucessão de quadros “bonitos”; falta-lhe primacialmente uma visão cinematográfica. Cada filme seu faz-nos lembrar sempre que ele é um especialista na organização de cortejos ... O seu sentido de valores plásticos permite-lhe trabalhar uma matéria já feita, como é o caso de Camões, com relativa felicidade e grande êxito entre o público que se comove com uma história por conta do mito nela contido, sem que de todo em todo lhe pese a ausência de real matéria cinematográfica.» 7

Outra gente vem tentar a aventura do cinema (entre ela uma mulher: Bárbara Virgínia, com Três Dias sem Deus). Com mais boa vontade do que engenho, à espreita de um êxitozinho de bilheteira, cada um trazendo consigo uma nova frustração. Talvez tenha sido Artur Duarte a averbar melhores resultados junto de um público que deseja essencialmente divertir-se e que ele realmente divertiu com O Costa do Castelo e O Leão da Estrela. Mas, atenção: estas comédias amavelmente satíricas, com momentos bastante divertidos (a que não foi alheia a participação de excelentes actores do Teatro) são obras «acomodadas». O texto original de O Leão da Estrela, por exemplo, foi despolitizado (como hoje se diria), o que é uma forma de servir uma certa política... ou uma certa estratégia, para estar de bem com os poderes instituídos e a censura.

3. Com data de 18 de Fevereiro de 1948 é promulgada a Lei n.º 2.027, de protecção do cinema nacional. Diz assim o seu Art.º 1.º: «A fim de proteger, coordenar e estimular a produção do cinema nacional e tendo em atenção a sua função social e educativa, assim como os seus aspectos artístico e cultural, é criado o Fundo do cinema nacional.» António Ferro, da sua posição oficial, explicaria, num discurso (que veio a ser contrariado pelas acções que posteriormente se viram), que o Fundo «será para ficar à disposição dos devotos do cinema nacional e não dos seus exploradores». E diz como e quem pode recorrer a esse Fundo: produtores e realizadores de: «a) filmes regionais ou folclóricos, quando as planificações não sejam mesquinhas, catitas, demasiado vestidas à moda do Minho; b) filmes históricos, porque tal cinema se for elevado nos eleva sempre; c) filmes policiais de boa urdidura; d) filmes extraídos de romances ou de peças, conforme o romance ou a peça e conforme a planificação (note-se a ambiguidade desses conforme); e) documentários que se proponham, com boas garantias, filmar certas obras do nosso renascimento ou aspectos das paisagens, cidades e monumentos do nosso país; f) filmes de essência poética; g) filmes do nosso quotidiano». E mais adiante, no mesmo discurso, António Ferro afirmara: «Não serão filmes de êxito comercial garantido, mas foi para eles, precisamente, que se criou o Fundo Cinematográfico Nacional que os ajudará a travar a batalha necessária, indispensável, para reabilitar o cinema português e elevar o nível do gosto do público.» Logo a seguir, António Ferro lembra os filmes cómicos, que também poderão aspirar a auxílio do Fundo «quando se tratar de comédias amáveis ou até de bons costumes populares, mas não explorem o que há ainda de atrazado, de grosseiro, na vida das nossas ruas ou no porte de certas camadas sociais», e não incluam «expressões de calão, gostos ou atitudes de bruteza».

Como se vê... por um lado, palavras prometedoras que a realidade não confirmaria (enquanto Manuel de Oliveira via retidos e sem auxílio projectos de filmes como Angélica, filme de essência poética, mas com muitas implicações que não agradaram ao SNI; como Pedro e Inez, filme de carácter histórico, mas fora dos moldes esteriotipados; A Velha Casa, recreação de um romance de Régio; O Bairro de Xangai, filme do quotidiano... num bidonville do Porto, ― muito dinheiro foi posto em mãos inábeis para a realização de mistelas de todo o tamanho; e não foi só Manuel de Oliveira a ser desfavorecido: outros o foram também, incluindo alguns dos beneficiados que pagaram com concessões o que receberam em financiamentos...); por outro lado, ausência total de criação de estruturas para garantia de expansão e colocação do produto nacional no mercado interno. Em vez disso, a Lei estabelecia a obrigatoridade de exibição de filmes portugueses de grande metragem «na proporção mínima de uma semana de cinema nacional por cada cinco semanas de cinema estrangeiro, independentemente do número de espectáculos semanais» (...) «na medida em que o número de filmes nacionais o permitir». (Cap. V ― Art. 17.º). Esta disposição nunca foi rigorosamente cumprida e acabou por ser desrespeitada. Nem sequer era realista.

No discurso de António Ferro apontam-se os critérios a adoptar para a concessão de subsídios. É de notar o espírito subtilmente restritivo que os deverá informar, traduzido naqueles «conforme», «com boas garantias», «desde que», ou na referência a «comédias amáveis», a «bons costumes», etc.

Quando a Lei baixou à Assembleia, já estava aprovada por Salazar. A Assembleia só tinha que dizer sim, e estava o caso arrumado. Mas deu-se, então, um caso inesperado. Um novo deputado, o Prof. Mendes Correia, julgando ainda que uma Lei posta à apreciação da Assembleia Nacional seria para estudar, discutir e corrigir, procurou documentar-se, consultou várias pessoas ligadas às actividades cinematográficas e foi para S. Bento levantar os seus reparos e expor algumas dúvidas que diversos pontos do diploma lhe suscitavam. Nesse mesmo dia, ou no dia seguinte, logo alguém (A. Lopes Ribeiro sabe quem foi...) procurou o Prof. em casa de seu irmão, onde estava hospedado, com a incumbência de o convencer (primeiro) das qualidades e vantagens da Lei e (em última instância) o avisar de que «Salazar queria a Lei aprovada depressa, melhor seria o Sr. Professor não fazer ondas...» Outro caso típico deu-se a seguir. Roberto Nobre fez e publicou num folheto uma análise desfavorável da Lei. O folheto intitulava-se «O Fundo». Por ordem do SNI, a Pide «visitou» e vasculhou a residência de Roberto Nobre, sendo o folheto apreendido. Com o tempo veio a verificar-se que a Lei não aproveitou ao cinema nacional. E, com o espírito que acabou por informar a sua aplicação, antes serviu para o afundar... Ao contrário do que António Ferro «profetizara», no discurso citado.

As palavras que referi inseriam-se na alocução que Ferro pronunciou quando da atribuição do prémio do SNI ao filme Camões 8. Quase no final, depois de fazer o elogio do produtor (António Lopes Ribeiro) e do realizador (Leitão de Barros): «dois homens de acção e de espírito que se juntaram para uma grande obra de interesse nacional», António Ferro aludiria à presença do filme Camões no Festival de Cannes, onde não recebeu prémio nem nada «porque contra ele se levantaram influências dos comunistas... incapazes de compreenderem o nacionalismo elevado e puro, tranquilo e modesto, de certas nações que se contentam consigo próprias e com os seus limites...» Sempre com costas largas, os comunistas.


4. É ainda no ano de 1948 que surge o movimento dos cineclubes. O primeiro (Círculo de Cinema, de Lisboa) foi brutalmente reprimido pela polícia política. Mas o Cineclube do Porto, fundado em 1945, ganha força em 1948 com a entrada, para a sua direcção, logo após a aprovação dos seus estatutos, de Luís Neves Real, Manuel de Azevedo, Gonçalves Lavrador, Henrique Alves Costa, os irmãos Virgílio Pereira, Mário Bonito e José Borrego. Rapidamente o Cineclube do Porto ultrapassa o milhar de sócios e assume um papel de grande relevância. Outros cineclubes vêm formar-se e colocar-se a seu lado: o Clube de Cinema de Coimbra, o Cineclube Universitário, o ABC Cineclube de Lisboa, o Cineclube Imagem. Deles dirá Manuel Pina (in O Cinema

Enciclopédia da 7.ª Arte): «Os seus propósitos eram claros: encarando o cinema como uma forma de expressão artística e veículo de ideologias, procuravam, através de uma actividade didáctica ― textos, palestras, colóquios ― alertar a generalidade do público para o fenómeno cinematográfico, a sua importância, o papel que desempenhava. (...) O movimento rapidamente se estendeu a todo o país, havendo por volta de 1956, mais de 30 cineclubes em actividade. As consequências foram incalculáveis pois surgiram grupos de pessoas profundamente interessadas no cinema, quer como simples espectadores mais exigentes, quer como intervenientes no processo: alguns tornaram-se profissionais, outros abordaram o campo da crítica, outros ainda permaneceram ligados aos cineclubes e aos problemas da difusão do cinema. Face a este crescente interesse, os próprios Distribuidores acabaram por ser solicitados a arriscar exibir filmes até aí impensáveis; a maioria dos jornais diários entregou a sua secção de crítica quer a especialistas, quer a figuras culturalmente representativas. Era uma bola de neve. Quando, a partir de 1958, a repressão maciça se abateu sobre os cineclubes, era já impossível abafar a semente lançada, e o cinema português acabou por reflectir essa circunstância.»

Entre os cineastas saídos dos cineclubes (e que fariam nome a partir de 1964) poderemos citar, entre outros, José Fonseca Costa, António Reis, António-Pedro de Vasconcelos, Paulo Rocha. Os cineclubes eram também focos de resistência contra uma política de «neutralização», desinformação, embrutecimento, despolitização, em que o regime se empenhava para que tudo, tranquila e conformadamente, fosse aceite segundo as determinações férreas de um homem só. A influência dos cineclubes e, sobretudo, as intervenções atentas e corajosas do Cineclube do Porto, foram decisivas para alguns grandes passos em frente o cinema português, como essa justamente celebrada «Semana do Porto» (promovida pelo cineclube local) de que resultou a criação do Centro Português de Cinema e o auxílio da Gulbenkian para a produção de alguns filmes independentes e descomprometido que, sem isso, talvez jamais se tivessem realizado.


5. Nos fins da década de quarenta aparecem ― ao lado de Artur Duarte, Leitão de Barros, Lopes Ribeiro, Brum do Canto, Armando Miranda, Henrique Campos ― três ou quatro nomes novos (alguns estrangeiros, como Ladislau Vadja e Eduardo Maroto). Não adiantam grande coisa, mas ajudam a manter a produção de longas-metragens entre os quatro e os sete filmes por ano (seis em 1946, sete em 1947, quatro em 1948, sete em 1949), cada qual representando um empreendimento isolado ou uma aventura para que se parte sem meios técnicos e financeiros capazes. Como, nessa altura, ainda o filme português atraía um número razoável de espectadores, às vezes os exibidores davam uma participação financeira (garantida pela receita da exibição do filme na sua sala), o que ajudava a juntar a verba necessária para a produção.

Entre os recém-chegados está Perdigão Queiroga. Estreia-se, no filme de enredo, com Fado, História duma Cantadeira, segundo um argumento original de Armando Vieira Pinto. O filme conta com alguns trunfos: fados de Frederico de Freitas, Frederico Valério e Jaime Santos, com versos de José Galhardo e Silva Tavares, e um atractivo conjunto de intérpretes: Amália Rodrigues, Vasco Santana (num papel fora do seu estilo habitual), António Silva, Eugénio Salvador e Virgílio Teixeira. Queiroga revela- se muito mais hábil e (tecnicamente) mais capaz do que um Armando Miranda ou Henrique Campos, mas é um cineasta com limitações culturais e uma concepção de cinema demasiado comercial, circunstâncias que acabarão por tolhê-lo. De tudo isto não deixará dúvidas quando, em 1951, realiza Sonhar é Fácil, segundo um argumento de Leão Penedo, numa aproximação da corrente neo-realista que se verificava na nossa literatura. Sonhar é Fácil «era um bom tema» ― escreverá Roberto Nobre ― «mas o desencontro entre o que Leão Penedo concebera e que se realizou foi deliberado, pois apenas se quis fazer uma comédia sem compromissos, aproveitando as situações, qualquer outra intenção explícita ou implícita. Se o argumento era de intuito neo-realista, já não o foi a adaptação e, muito menos, a realização de Queiroga, que, evitando embora o “popularuncho” nacional, parece ter visado fazer uma comédia amena, dum burguesismo socializado, à Frank Capra, dispondo, é claro, de meios bem mais precários».

Na direcção de actores, também Queiroga não soube (ou não quis) pedir a António Silva a composição correcta do personagem principal, «que devia ter um fundamento de humanização e de ternura que conseguisse comunicar-nos a soma de poesia que transcende a insensatez, mesmo o ridículo. Isto lhe pedia o argumento, mas não foi isso que lhe pediu o realizador e não foi isso que lhe deu o actor». (Roberto Nobre). Sonhar é Fácil foi o melhor filme de Queiroga e o limite das suas capacidades. Mais tarde fará umas Pupilas do Sr. Reitor (terceira versão), a cores, muito «folclóricas» e muitíssimo foto-novela, o que, diga-se de passagem, agradou muito ao S.N.I....

Outro nome que apareceu foi Fernando Garcia, com uma inverosímil história de pescadores, a que chamou Heróis do Mar. Cinco anos mais tarde, de mãos dadas com Domingos de Mascarenhas, que Lopes Ribeiro tinha trazido para a crítica cinematográfica, daria cabo de um saboroso conto de Eça de Queiroz: O Cerro dos Enforcados, transformando-o num pastelão à «film d’art» com a agravante (crime premeditado) de trair o humor e o sentido com que Eça o escreveu.

A fechar a década de quarenta, vem o grande estenerete de Leitão de Barros com Vendaval Maravilhoso, produção luso-brasileira que custou milhares de contos (o que para a época era coisa de espantar) e ficou a não valer um chavo. Leitão de Barros não soube tratar um assunto tão rico de conteúdo humano como era a biografia do grande poeta Castro Alves e o seu combate à escravatura, que era também um combate à sociedade do seu tempo. Leitão de Barros deixou-se conduzir, mais uma vez, pela tendência simplista para o superficial, o fácil e o pitoresco. Do drama dos escravos o Brasil não soube dar a imagem. O génio, o fogo, a inquietação de Castro Alves aparecem- nos, por sua vez, adocicados e diluídos num filme mal articulado, feito sem génio, sem fogo, sem imaginação. Vendaval Maravilhoso foi o suicídio cinematográfico de Leitão de Barros. O tema era grande de mais para ele: a figura de Castro Alves e a sociedade em que viveu, os problemas sociais do Brasil nos meados do século XIX, o contraste entre o ambiente romântico dos salões burgueses e a economia esclavagista, sobretudo a vida maravilhosa do poeta-tribuno, de quem Jorge Amado diria ter sido «o mais belo espectáculo de juventude e de génio que os céus da América presenciaram», eram matéria para cineasta de maior estatura e mais consciente das responsabilidades que assumia. Isto aponta, como exemplo alarmante, Manuel de Azevedo, em Perspectiva do Cinema Português (pags. 73 a 78)

Informação retirada de Breve História do Cinema Português (1896-1962) de Alves Costa

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