quarta-feira, 20 de julho de 2022

História do Cinema em Portugal - O Regresso de Manuel de Oliveira



1. Afastado do cinema mas não divorciado dele, Manuel de Oliveira nunca pôs de lado a ideia de voltar. Resolve-se a fazê-lo com Angélica (uma história de sua autoria, localizada no Douro, que reflectia muito de si próprio, das suas inquietações e da impressão que lhe causara a II Grande Guerra Mundial). Era um projecto longamente amadurecido, para a concretização do qual requereu um subsídio do Fundo de Cinema. O subsídio foi-lhe negado e o projecto gorou-se. Entretanto, tomado de novo entusiasmo, vai à Alemanha (em 1955) estudar o emprego da cor, compra uma máquina de filmar e, no regresso ao Porto, inicia a rodagem de uma curta metragem sobre o Porto, que realiza sozinho e à sua própria custa. Ele mesmo maneja a câmara. Assim nasce O Pintor e a Cidade, que termina em, 1956.

O Pintor e a Cidade é menos um documentário sobre o Porto do que uma reflexão feita através da observação do pintor na deambulação pela cidade. Rico de sugestões, com uma cor muito bem trabalhada, com uma banda sonora sem efeitos acessórios, alguns dos seus momentos são particularmente significativos, como a opressiva sequência no sombrio bairro do Barredo (autêntica «descida aos infernos») que se opõe à sequência anterior, a das igrejas, que termina num movimento ascensional da câmara («subida aos céus» simbolizando a libertação do espírito). Outro desses momentos é a sequência das «passadeiras». Ao sinal do polícia, os peões passam ou esperam. Vão, alheios ao que os cerca, para o seu destino quotidiano. Esperam... passam. Esperam... passam. Na banda sonora, ao ruído ambiente sobrepõe-se o bater de passos cadenciados. Intercaladas, como relâmpagos, surgem as imagens de D. Pedro IV estendendo a Carta, do Infante apontando o mar, de Maria da Fonte empunhando a bandeira da Nação. O homem anónimo sempre conduzido por forças determinantes, por um comando: umas vezes é um destino histórico, outras vezes a luta por um ideal, outras ainda uma exaltação colectiva, as mais das vezes a luta pela vida. Alguém dá o sinal e aponta o caminho: o Infante... o Rei soldado... Maria da Fonte... um simples polícia sinaleiro.

Há ainda a ideia da incontável transformação acarretada pelo progresso (nas «explosões» de fachadas modernas rasgando a velha fisionomia da cidade), e a evocação saudosista do passado (na sequência dos jardins), pausa de instantes para se voltar a um outro dia sempre repetido de labuta (entrada dos operários para as fábricas, vindos da periferia e dos bairros de lata). Um mundo de coisas num filme de vinte e cinco minutos. Mas... como escreveu José-Augusto França: «o que um filme notável como O Pintor e a Cidade, com o seu sentido rítmico, o seu entendimento da cor, o seu poder, visual, a sua imaginação evocativa e a sua honestidade, representa estética e moralmente na apagada e vilíssima tristeza do nosso cinema ― c’os diabos, não é preciso dizê-lo!»

Não era preciso dizê-lo senão ao SNI, que atribuiu o «prémio Paz dos Reis», desse ano, para a melhor curta metragem, a um documentário de que ninguém se lembra, e a O Pintor e a Cidade deu a esmola do Prémio da fotografia... Mais inteligente, como era óbvio, foi o júri do Festival de Cork (festival internacional da curta metragem). Na sessão de encerramento, o documentarista britânico Basil Wright, presidente do júri, ao anunciar a atribuição de um prémio ao filme português, perante as 2500 pessoas que enchiam o cinema «Savoy», teve estas palavras: «O filme português O Pintor e a Cidade foi o filme mais interessante apresentado neste Festival. É uma obra cheia de originalidade, de imaginação, com magníficos exemplos de fotografia a cores, enquadramentos invulgares e uma montagem curiosa. A única razão porque não lhe atribuímos o primeiro prémio

não obstante o seu indiscutível mérito ― foi por não ter conseguido, em nossa opinião, tornar bem claras algumas das ideias que procura exprimir.»

Durante as filmagens de O Pintor e a Cidade, a visita ao bairro de lata que existiu, até há poucos anos, perto do Castelo do Queijo, sugeriu a Manuel de Oliveira a ideia para outro filme, desta vez um filme de enredo de fundo social (o dramático problema da habitação das classes menos favorecidas). A planificação que apresentou ao Fundo do Cinema também não foi aprovada. E, deste modo, O bairro de Xangai não se fez. (O problema das «ilhas» do Porto ninguém o resolvia e o problema da habitação para trabalhadores com baixos salários também não via solução. Mas falar deles num filme não era coisa que se permitisse... Mostrar aquela realidade social seria desmentir muita coisa. Mesmo nas entrelinhas de um filme que nada tinha de panfletário.) De então para cá, as coisas não mudaram sensivelmente, só que os cineastas já podem gritar: casas sim, barracas não!

Em 1959 Manuel de Oliveira termina o seu documentário de grande metragem, O Pão. Não obstante ter sido, a princípio, um filme de encomenda da Federação Nacional dos Industriais de Moagem, Manuel de Oliveira altera completamente o projecto proposto por essa entidade, garante total liberdade de criação e faz um filme em que as moagens modernas passam para um plano secundário. O que mais interessa a Manuel de Oliveira está noutro lado; o que ele na realidade quer mostrar é outra coisa. Filma milhares de metros de película. Ideias novas surgem-lhe a cada momento. A obra nasce na mesa de montagem, num trabalho minucioso vinte vezes recomeçado. Trata-se de dar alma às imagens, emprestar um sentido e um significado a cada sequência, investigar sobre a «linguagem» estética, para que a obra forme um todo significante, se erga e se equilibre.

Uma grande distância separa já Douro, faina fluvial deste filme, belo, original, superlotado de ideias e de valores simbólicos. A força e o ritmo palpitante de Douro deram a vez a uma serenidade reflectida e um pouco amarga, mas de onde emerge, uma vez mais, a dignificação do homem no esforço árduo de ganhar no trabalho, o pão de cada dia. O jovem de vinte anos, objectivo e polémico, deu lugar ao homem amadurecido que medita sobre os mistérios da vida e as contradições da condição humana, sem perder a ocasião de assumir, com extrema subtileza, uma posição crítica (e por vezes irónica) perante aquilo que observa.

Ao Pão seguiu-se Acto da Primavera, versão cinematográfica do «Auto da Paixão» que o povo Curalha representa todos os anos, a céu descoberto, pela Semana Santa. Reafirmo o que, há anos, escrevi noutro lugar: Acto da Primavera não é só uma obra de grande fôlego, ambiciosa, de concepção muito original e de invulgar beleza; é também um acto de coragem. Não de estranhar que esta interpretação de alguns passos do Evangelho, a partir da representação popular do «Auto da Paixão», tenha, à data da estreia, provocado as reacções mais diversas. O tempo foi consolidando o seu valor e uma modernidade que na altura surpreendeu e foi mal compreendida. Na realidade, a construção do filme era singular. Utilizando o próprio texto do Auto e algumas das suas passagens principais, filmando nos locais onde decorre normalmente a representação, conservando as barracas que na «encenação» popular representam o Templo, a casa de Pilatos, o palácio de Caifaz, etc., servindo-se dos mesmos «actores» e respeitando a sua declamação, Manuel de Oliveira passa da realidade para a representação, sem soluções de continuidade, para depois transcender a própria representação. Assim, coloca-nos como espectadores dos espectadores do Auto para, progressivamente, nos colocar dentro dele como participantes. E tudo isto pelos processos mais depurados, com cenas de uma beleza fascinante, transitando de uma óptica teatral para uma óptica puramente cinematográfica. Saudei, então, Acto da Primavera, como a grande obra-prima de Manuel de Oliveira. Saudei-a como a mais original e avançada película do nosso cinema, com o relógio adiantado sobre a cinematografia de qualquer outro país. E apontei-a como a primeira fita política portuguesa (no sentido mais lato da palavra), em que Manuel de Oliveira ousava dizer, por subtis linhas travessas, o que ninguém, entre nós, ousara dizer por linhas tortas ou direitas...

O Acto da Primavera foi recebido com bastantes reticências. Foi preciso esperar mais de dez anos para ser entendida a sua importância. E, uma vez mais, é do estrangeiro que vem a sua consagração. Apresentado no Festival Internacional do Filme, de Siena (Itália), um Festival particularmente voltado para o folclore (no sentido mais nobre e respeitável da palavra) e onde não pesam nem interesses comerciais nem influências políticas, Acto da Primavera foi galardoado, por unanimidade do júri, com o Grande Prémio (medalha de ouro e um milhão de liras). Posteriormente apresentado em Veneza, integrado numa retrospectiva de toda a obra de Manuel de Oliveira, promovida pela Organização da Bienal de Veneza de 1975, o crítico italiano Giovanni Grazzini escreveria: «Acto da Primavera faz-me lembrar Pasolini, pela simplicidade intensíssima de certos momentos e faz-me pensar em Straub pela orgânica estrutural do filme.» E, mais adiante, diria: «Oliveira, que se encontra entre os precursores do neo-realismo com o filme Aniki-Bóbó, revela em O Acto da Primavera um gosto apurado pela composição, um grande cuidado na cor, um grande saber na ordenação dos espaços e uma tristeza de fundo (estupendo é o lamento de Verónica) que exprime com perfeição as raízes portuguesas. (...) E também se pensa, andando muito para trás, na Pintura seiscentista.» Outro crítico, Morando Marondini, escreverá: «O itinerário de Oliveira revela não só um cineasta de admirável coerência formal, mas também um realizador que, pelas misteriosas vias da intuição, sabe, de filme para filme, antecipar ou pressentir as evoluções progressivas da linguagem cinematográfica.» Por sua vez, Ugo Casiraghi, em «L’Unità» (8-9-76) salienta «la grande originalità e la potenza di un artista che, nell’ampiezza della sua testiera e dei suoi riferimenti culturali, assomiglia soltanto a se stesso.»
Acto da Primavera (realizado em 1961-62) foi o primeiro filme de Manuel de Oliveira que recebeu um auxílio pelo Fundo do Cinema. A verba concedida (segundo declaração do SNI à revista «Plateia» ― n.º de 20-1-64) incluindo o custo de quatro cópias normais e uma cópia legendada em francês foi de 817 272$50, o que é uma quantia bem moderada em relação ao filme de que se trata (e a cores). Seria interessante perguntar ao produtor de O Evangelho segundo S. Mateus (filmado a negro e branco) quanto custou este filme de Pasolini, realizado no ano seguinte.

Até esta altura, Manuel de Oliveira foi uma figura isolada, um caso à parte dentro da nossa cinematografia. Muitos filmes tinham sido feitos em Portugal, com louvável esforço uns tantos, com merecimento e inegáveis qualidades uns tantos outros. O cinema de Manuel de Oliveira, porém, era o único verdadeiramente significante e original, sempre renovado e de profundas raízes portuguesas. Ao seu talento, à sua sinceridade, à sua coerência, à sua capacidade criadora, Manuel de Oliveira junta outra e rara qualidade: a humildade. E, no entanto, «pela virtude puramente cinematográfica das imagens e da linguagem, o poder criador da cor, o virtuosismo do som, as suas obras explodem sobre o écran com um vigor que apenas encontramos entre os maiores.» (Paulo Rocha).
Pelos anos adiante, Manuel de Oliveira prosseguirá sempre, com a mesma coerência e a mesma honestidade

direi mais: com a mesma juventude de espírito e a mesma invenção, uma via muito pessoal (que passará por A Caça, O Passado e o Presente e Benilde) «com a satisfação moral ― e cito outra vez um crítico italiano ― de não ter de envergonhar-se nem de um só dos seus fotogramas» (Callisto Cosullich, in Paese Sera de 9-9-76).

E, lá mais para a frente, Manuel de Oliveira já não estará tão só. Novos cineastas ― que por volta de 1962-66 começaram a experimentar a mão ― viriam lutar, também, por um cinema digno e culturalmente interveniente, resistindo à censura e ao desinteresse de um grande sector do público que tinha voltado as costas ao cinema nacional (sempre abafado na «colonização» do nosso mercado cinematográfico pelos «imperadores» da distribuição de filmes e a falta de uma protecção eficaz).

Informação retirada de Breve História do Cinema Português (1896-1962) de Alves Costa

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