quarta-feira, 20 de julho de 2022

História do Cinema em Portugal - Do Teatro filmado de Lopes Ribeiro ao neo-realismo de Manuel Guimarães (1950-1956)


1. No ano de 1950 só se produziram dois filmes: O grande Elias, uma comédia muito chocha de Artur Duarte, e Frei Luís de Sousa, de António Lopes Ribeiro, segundo a peça de Almeida Garrett. Este filme teve um grande êxito comercial e, apesar das suas limitações, podia ter servido para provar que não é preciso lisonjear o mau-gosto que se atribui à maioria do público com historietas lorpas, com cantigas, touros ou fados, para o atrair e interessar. Na realidade, a procura de uma certa dignidade e um mínimo de aprumo na mise-en-scène foram factores que influenciaram favoravelmente um público que, durante cerca de dois meses, acorreu ao cinema para ver em imagens o drama de Garrett.

Frei Luís de Sousa ― filme não passou, no entanto, de teatro filmado. Só as duas dimensões do écran dão à peça de Garrett aspecto diferente da sua «clássica» representação no palco. E é, justamente, quando Lopes Ribeiro deita mão a alguns recursos que o cinema lhe oferecia que a sua obra fica desfavorecida (salvo na bela sequência final, na capela, a mais lograda de todo o filme). Incapaz de recriar Frei Luís de Sousa, Lopes Ribeiro serviu-se o melhor que pôde de um texto e de uma estrutura pré-existentes, apoiando-se neles como o faria no palco, sem grande imaginação e nos moldes tradicionais do teatro que então se praticava em Portugal (nem sempre ajudado pelos intérpretes). Na seguinte e última grande metragem de António Lopes Ribeiro, a tarefa era muito mais árdua pois tratava-se de transpor para a tela um romance: O primo Basílio (1959). Mais uma vez, nesta segunda adaptação do romance de Eça de Queirós, o cineasta não passou da (má) ilustração do enredo. Eça ficou de fora. Totalmente. Era preciso muito fôlego, muita aplicação e muito talento para se encontrar a equivalência cinematográfica do estilo (e do espírito) da obra literária, cuja riqueza está na minúcia da observação, no subtil recorte dos personagens, na mordente ironia e no peculiar humor da prosa queirosiana. Se a encenação ficou fora de tom (com cenas de aflitivo mau gosto), fora de tom ficou, também, a interpretação. Cada actor deve ter feito o que lhe pareceu melhor sem que o realizador os tenha feito aproximar correctamente das personagens. Tal como na primeira versão de George Pallu, estas personagens ficaram diminuídas e, por vezes, irreconhecíveis. Mesmo Cecília Guimarães ― actriz de indiscutível capacidade ― não conseguiu ultrapassar a sua antecessora. Ângela Pinto, com talento para dar e vender, foi uma Juliana muito mais próxima da figura criada por Eça, embora dirigida por um realizador estrangeiro que não teria da obra literária um conhecimento perfeito.

Entre estes dois filmes (1950 a 1959) muita água turva foi correndo pelas valetas. O cinema português desce a passos largos para uma degradação inquietante pelos caminhos mal calcetados do folhetim, do melodrama, da comédia torpe, mas o público ainda não lhe recusa assistência. Os cineastas que chegam nessa altura, a tentar a sua sorte no cinema, concorrem ainda mais para essa degradação. Augusto Fraga, com Sangue toureiro faz uma estreia bem pouco auspiciosa. Constantino Esteves aparece com um trôpego Comissário de Polícia. Armando Vieira Pinto ― que se revelara, de um dia para o outro, um dramaturgo de muito mérito, com Desencontro e Coristas ― mete-se na desastrosa aventura de dirigir o filme Eram duzentos irmãos. Ao lado dos que chegam, e cito apenas três exemplos, e dos que por cá vão andando sem avançar (Queiroga, Miranda, Henrique Campos), reaparece Brum do Canto com um longo e ambicioso Chaimite, de exaltação colonialista em lusitano jeito de «westem» americano. Por seu lado, Artur Duarte, desviando-se da comédia ligeira ― terreno em que não consegue renovar-se ― cavaca um filme odioso e moralizante: A garça e a serpente, «com um péssimo entrecho que promove um tremedal de desvergonha em nome das boas intenções.» (Roberto Nobre).


2. Artur Duarte é um caso ímpar no cinema português. Embora em tom menor. É o profissional de cinema que vem de mais longe. Operoso mas extremamente limitado, com vários grandes êxitos comerciais na sua longa carreira e uma constante actividade, se não é aqui é ali, nunca sofreu evolução. Nasceu em Lisboa em 1895. Cursou o Conservatório, o que parece ser coisa boa para as pessoas se conservarem sempre na mesma. Fez teatro entre 1917 e 1922. Foi para Berlim em 1924 tentar a sorte no cinema, onde fez pequenos papéis em mais de cinco dezenas de filmes. Diz que trabalhou ao lado de Fritz Lang (o que não se nota). Nos anos trinta andou por França e Espanha como assistente e director de produção. Assimilou pouco do cinema que deve ter visto, cá e lá fora. Entre 61 e 66 trabalhou no Brasil. Em Portugal, entrou em vários filmes como intérprete, desde o tempo do cinema mudo, e realizou catorze longas metragens e alguns filmes curtos. Sempre activo, empreende em 1976 a transposição para o cinema da peça de Ramada Curto A Recompensa. Festejou há tempos os seus rijos oitenta anos. E tem diversos projectos para o futuro, entre os quais um filme patriótico sobre Carvalho Araújo. Das voltas que o mundo deu, das voltas por que tem passado o cinema, nada fica a transparecer dos seus filmes. E, todavia, ele foi testemunha. Um bom realizador faria da sua vida um filme curioso.

Para Constantino Esteves, o que conta é o negócio. Percebe-se logo isso nos primeiros filmes que faz. E fez bastantes e bastante maus. Numa entrevista concedida ao «Diário de Lisboa» em 26-8-1968 define-se claramente: dirá que se especializou «em filmes de puro entretenimento» e que o cinema é para ele «uma actividade em que faz aquilo que as circunstâncias permitem», isto é: «filmes que possam ser classificados para maiores de 12 anos, sem complicações, para darem dinheiro na província e estarem ao gosto do rapaz do talho, da velhinha de imaginação simples, da empregadinha doméstica semi-analfabeta.» E acrescenta: «O grande público gosta (... ) A crítica torce o nariz. Eu rio-me. Encolho os ombros. Isto é uma reinação.» Tudo isto representa o mais descarado desrespeito por um público imaturo, tomando-o por atrasado mental. Constantino Esteves confunde divertimento e simplicidade temática com historietas estupidificantes, de mau gosto e mal atamancadas. Constantino Esteves disse ainda: «O meu Miudo da Bica salvou da ruína o produtor de Pássaros de Asas Cortadas, de Artur Ramos. Que se pode fazer mais?...» Toda a gente sabe o que se pode fazer, o que poderia ter-se feito. Mas... talvez conviesse que o público que gosta e se diverte com as fitas de Constantino Esteves não passasse jamais do seu estado de incultura e se mantivesse mesmo simplório, abúlico, ingénuo, quietinho... para não vir a desejar outra coisa (era a «política do espírito» do antigo regime) e, ao mesmo tempo, garantir o êxito de tantos Sarilhos de fraldas quantos outros tantos Esteves quisessem fazer.

Feita esta digressão, voltemos atrás, pois há que falar do aparecimento de Manuel Guimarães, que eu considero o caso mais dramático do cinema português. O seu nome surge em evidência, pela primeira vez, com o documentário O desterrado. A sua primeira obra, na longa metragem, será Saltimbancos, realizada em 1951.


3. Manuel Guimarães nasceu em 1915 em Vale Maior, onde viveu até aos três anos de idade. Seu pai era sócio-gerente da Fábrica de Papel do Prado, lugar que abandonaria por volta de 1918 para se dedicar à indústria de hotelaria. É assim que vem para o Porto, passando a viver na «Pensão dos Aliados», administrada por seu pai. Depois de concluído o 5.º ano dos liceus, Manuel Guimarães matricula-se na Escola de Belas-Artes do Porto. A sua primeira inclinação é a pintura, mas a sua grande paixão é o cinema. Em 1937 casou-se com D. Clarisse Fernandes Leal, companheira e colaboradora de toda a sua vida, de quem teve um à único filho: Dórdio Leal Guimarães. Antes de se profissionalizar no cinema foi pintor, caricaturista, ilustrador, decorador. No cinema, que não abandona nem nos momentos mais desesperados da sua vida, não escolhe lugares: foi assistente de realização, operador, repórter cinematográfico. Na falta de trabalho regressa às artes gráficas como paginador de jornais e revistas. Morrerá em 29 de Janeiro de 1975, vítima de um cancro quando terminava um filme em que punha bastantes esperanças, Cântico final, segundo o romance de Virgílio Ferreira. Realizou, por vezes em situações extremamente difíceis, oito longas metragens, quase todas a partir de obras literárias de Alves Redol, Bernardo Santareno, Fernando Namora, Vergílio Ferreira, Leão Penedo, assim como uma boa dezena de documentários correntes ou de encomenda.

Conheci Manuel Guimarães quando da apresentação de Saltimbancos (1951), a sua primeira longa metragem realizada quase em condições artesanais e com um orçamento muito esganado, do que o filme se ressentia visivelmente. Consciente das limitações do filme, ele me dizia ter sido a sua modesta contribuição para tirar o cinema português do charco em que ia metendo os pés e um esforço para integrar-se na corrente neo-realista que na altura perpassava pela nossa literatura. Depois disso, nunca deixei de estar atento à sua trajectória, quase comovente, feita de ilusões e derrotas, de anseios e frustrações. Manuel Guimarães era um homem simples, modesto, sincero, honesto, que não ignorava nem escondia as suas limitações, que aguentava com estoicismo os seus desaires, na esperança sempre adiada de um dia poder dar a medida total das suas capacidades. Levou-o a morte quando, por fim, poderiam surgir- lhe melhores perspectivas para uma carreira feita até ali de frustrações e de derrotas, de que a censura, castradora e repressiva, fora a maior culpada. A censura e a falta de apoio financeiro.

Em Nazaré , seu segundo filme de enredo, rodado em 1953, em que punha em foco a situação dos pescadores daquela praia, a censura desfigurou parte de uma obra que deliberadamente não se ficava pelo folclore, antes encarava a vida dos pescadores de um ponto de vista social. No filme seguinte, a censura iria abatê-lo. Manuel Guimarães tinha herdado uma pequena quantia: uns poucos centos de contos. Aplicou tudo nesse filme, com que sonhava há muito tempo. Até ao último vintém, mais alguns dinheiros que pediu emprestado. Assim fez Vidas sem rumo (1956), obra de um realismo poético que andaria muito próximo de um certo cinema neo-realista italiano, em que Guimarães pusera todo o seu amoroso empenho. A censura esfrangalhou a fita de tal sorte que tornou impossível a sua exibição. Tinha jogado tudo e perdeu tudo.
«Senti-me perdido, desorientado, vencido, desmoralizado ― disse-me ele um dia. ― Sofri uma enorme depressão, uma terrível angústia. E era tão aflitiva a minha situação económica que cheguei a passar fome...» Isto explica o estatelanço de A costureirinha da Sé.

Manuel Guimarães procurara assumir até ali uma atitude de dignidade artística e por esse caminho se esforçou, mal ou bem, por prosseguir. «Eu estava só», ― dirá ele numa entrevista concedida muitos anos mais tarde ― «lutando ferozmente contra uma engrenagem que apenas queria servir-se do cinema e não servi-lo. Aqueles ao lado de quem eu poderia estar, tinham desistido ou encontravam-se tão desiludidos que se tinham afastado. Ninguém sonha hoje os sacrifícios e o heroísmo que eram necessários para se fazer um filme com independência e sem apoios financeiros...» Homem que nunca vi metido nas tricas dos nosso meios cinematográficos, falava da sua obra com a maior das humildades: «Procurei, sempre que pude, fazer qualquer coisa de digno e válido dentro do cinema. Mas sei que os meus filmes nunca foram aquilo que eu desejava, nem sequer aquilo que poderiam ter sido se tivesse tido maiores disponibilidades financeiras. Estão mal acabados, mal estruturados, esteticamente indefinidos. De qualquer modo, fazer cinema era para mim a única razão de ser...

uma obsessão.» De Manuel Guimarães quase se pode dizer que morreu detrás de uma câmara de filmar. Na verdade, esta aqui um caso de paixão pelo cinema (paixão frustrada) de que pouca gente se terá apercebido. Poderia este cineasta, permanentemente derrotado (e derrotado à partida), ter sido pintor, ilustrador, decorador, cenógrafo; poderia ter-se voltado para o comércio, a publicidade, o jornalismo. O cinema tinha de ser a sua profissão, a sua vida, a razão da sua existência. Pelo cinema tudo sacrificou, na esperança, sempre renovada, de um dia poder fazer «o seu filme», em liberdade e com o tempo e os meios necessários. Cântico final, que deixou incompleto, não chegou a sê-lo.

O filme Vidas sem rumo acabou por vir a público, com vários remendos, no intento de salvar alguns tostões dos 550 000$00 que havia custado. Mas a censura tinha efectuado tais cortes que estava irremediavelmente destruído. Destruído um filme e destruído um homem sem imaginação para a iludir nem meios para lhe resistir. Persistente, não obstante as dificuldades e o complexo de inferioridade que o perseguia, nunca mais voltou às concessões da Costureirinha. Pelo contrário, em 1964, vemo-lo regressar com O crime da Aldeia Velha, segundo a peça de Bernardo Santareno «em que é evidente o sentido da expressão cinematográfica e a vontade de acertar e fazer obra digna e respeitável.» (F. Xavier Pacheco, in «Jornal de Notícias»).
Quando Guimarães realizou Nazaré, em 1953, o cinema português mergulhava no charco do mais baixo comercialismo. Já não era cinema nem coisa nenhuma. Foi então, já no ano de 1956, que reapareceu Manuel de Oliveira.

Foi então, também, face ao incremento e vitalidade do movimento cineclubista, que se procurou espartilhar os cineclubes (focos de consciencialização e de resistência) numa Federação controlada pelo S.N.I. (Decreto-Lei n.º 40572, de 16 de Abril de 1956), coisa em que os cineclubes nunca consentiram, embora sobre eles fossem aplicados todos os processos intimidatórios e perseguições (a que alguns não resistiram) directas ou subreptícias. A Federação ficou no papel, mas nunca conseguiu ser operante.

Nessa altura... entre os cineclubistas portugueses alguns traidores houve algumas vezes. O que, hoje, anda bastante esquecido... E, apesar do 25 de Abril de 74, esse decreto continua perigosamente inalterado e em vigor, por incúria dos próprios cineclubes, que mais se dispersam do que se entendem.



Informação retirada de Breve História do Cinema Português (1896-1962) de Alves Costa

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