quarta-feira, 20 de julho de 2022

História do Cinema em Portugal - Manuel de Oliveira - A sua primeira obra «Douro, Faina Fluvial»


1. Era uma vez... 
Lá para os fins dos anos vinte, António Lopes Ribeiro, que já andava nas lides cinematográficas como crítico de filmes nas páginas do «Diário de Lisboa», viu por acaso, num laboratório de Lisboa, parte de uma fita que ali fora mandada para revelar. Surpreendido e entusiasmado com o que vira, quis saber de quem era. Disseram-lhe um nome. Era-lhe desconhecido. Deram-lhe uma direcção e um número de telefone. Era no Porto. Procurando contactar o autor do filme, soube que ele chegaria a Lisboa no dia seguinte integrado num grupo de desportistas que vinham participar no Campeonato Nacional de Atletismo. Foi esperá-lo. E assim se deu o encontro entre os dois à saída da gare do Rossio. (Os comboios do Porto ainda não ficavam em Santa Apolónia). Lopes Ribeiro foi direito ao fim. Falou do seu entusiasmo pelo filme e do seu desejo de o incluir no espectáculo cinematográfico que estava a organizar para os participantes do Congresso Internacional da Crítica a realizar, dali a pouco, na cidade de Lisboa. Foi insistente e persuasivo: era preciso, era indispensável, concluir o filme rapidamente. 

O jovem atleta mal podia acreditar no que ouvia. A surpresa intimidava-o. Uma oportunidade destas nunca ele sonhara poder surgir-lhe. No seu foro íntimo, exultava; mas, cauteloso, punha reticências: que ainda havia material por revelar; que a montagem ainda ia levar o seu tempo... Lopes Ribeiro foi teimoso e peremptório: o filme tinha de estar pronto à data do Congresso. E assim entre ambos ficou assente. O filme em questão era Douro, Faina Fluvial. No dia seguinte a excitação do nóvel cineasta comprometeu a actuação do desportista. Incapaz de se concentrar, nunca ele fizera provas tão más. Foi um desastre. Este moço de vinte anos era Manuel de Oliveira. Se o seu nome era ignorado por Lopes Ribeiro e desconhecido nos meios cinematográficos, a verdade é que o não era nos meios desportivos. Manuel de Oliveira foi campeão de salto à vara e, nos famosos espectáculos anuais do Sport Club do Porto, executava, com seu irmão Casimiro, um arriscado número de trapézio voador. Também, por essa altura, o automobilismo o apaixonava, tendo vindo mais tarde a participar em corridas internacionais. Marcou destacada presença nas corridas de Vila Real e da Gávea, no Brasil, onde ganhou um dos circuitos. Se abandonou o atletismo quando começou a interessar-se pelo cinema, só abandonaria as corridas de automóveis quando se casou. Entretanto tirou o «brevet» de piloto aviador. Automóveis de corrida e aviões eram, talvez, a alternativa perante as dificuldades que sempre enfrentou para fazer cinema e através dele se exprimir. 

2. Voltemos uns anos atrás. Houve em tempos, quase no tôpo da Rua 9 de Julho 4, no Porto, em terreno sobranceiro à rua, um grande palacete meio oculto por duas frondosas tílias. O acesso fazia-se por um largo portão de ferro que abria para uma rampa que levava à moradia e à pequena unidade fabril anexa. Ambas pertenciam a Francisco José de Oliveira, industrial empreendedor a cuja iniciativa se deve a primeira fábrica portuguesa de lâmpadas eléctricas, a primeira fábrica nacional de artigos de malha e o aproveitamento hidro-eléctrico do rio Ave, no Ermal. Terceiro filho desse industrial, foi naquele palacete que, a 10 de Dezembro de 1908, nasceu Manuel de Oliveira, de nome de baptismo Manuel Cândido (Pinto de Oliveira de apelidos). De seu pai herdou, em certo sentido, a imaginação, a persistência e o poder criador. Mas não criou preconceitos de classe, embora fossem um tanto distantes as relações dos trabalhadores com o filho do patrão Seria justamente para o mundo do trabalho na beira-rio que seus olhos iriam voltar-se, fixando em imagens cinematográficas a viva expressão do esforço quotidiano do Homem, irmanado com a máquina e o animal, na árdua faina de ganhar, com autêntico suor, o magro e amargo sustento de cada dia. Como aconteceu com muitos jovens da sua geração, o cinema apaixonou-o desde muito novo. 

Era uma aventura fascinante a que então se vivia, dia a dia, face ao écran, sem interditos. Primeiro, era o mundo inteiro que se abria na nossa frente, o passado e o presente, o drama e a comédia, o fantástico e o sonho, ali, no rectângulo iluminado das salas escuras dos cinemas onde todas as noites podíamos identificar-nos com os «heróis» das fitas. Depois, era uma nova arte, uma nova forma de expressão que brotava e evoluía vertiginosamente na nossa frente. Aos dezasseis anos, Manuel de Oliveira desejou entrar para o cinema, como actor cómico ou burlesco. Outro qualquer, com a sua bela figura (as mocinhas voltavam-se quando com ele cruzavam na rua) teria desejado ser Rudolfo Valentino ou Ramon Novarro. Na realidade aquele juvenil anseio foi efémero ― depressa substituído pelo irresistível desejo de fazer cinema. Por essa altura, Rino Lupo veio para o Porto terminar as filmagens de Fátima Milagrosa. Aqui abriu uma Escola de Actores de Cinema para arranjar algum dinheiro e complacentes figurantes. Manuel de Oliveira foi dos primeiros a inscrever-se (com o pseudónimo de Rudy Oliver ... ), menos com a ideia de vir a ser galã de cinema do que a de saber como era o cinema «por dentro», figurando no filme de Rino Lupo. Por ali nada aprendeu. 

As lições ia-as recebendo de outro lado, na «universidade do cinema» que, para o aluno atento, eram os écrans do Trindade, do Olímpia, do Passos Manuel e do Salão High-Life: as lições do expressionismo alemão, do realismo de Pabst e Lupu Pick, de alguns vanguardistas franceses, da imensa força dramática de Mãe, de Pudovkine ou da Joana d’Arc, de Dreyer, da violência demolidora de Eric von Stroheim, da inquietante grandeza dos nórdicos Stiller e Sjostrom... Quanto a livros teóricos, sobre linguagem e estética cinematográficas, creio que nunca leu nenhum. Um dia, foi isto em 1929, Manuel de Oliveira conseguiu que o pai lhe emprestasse uns escudos e comprou uma máquina de filmar de 35 mm, portátil, com corda para trinta metros de fita. Estava decidido a fazer o seu primeiro filme, cuja ideia tinha longamente amadurecido. O trabalho ribeirinho, as pontes, o bairro do Barredo, o rio, fascinavam-no. Escreveu uma planificação muito pormenorizada para reter no papel o filme que se construía dentro de si. A sugestão da linha mestra viera-lhe de um filme de Ruttmann, Sinfonia duma Capital ― 24 horas da vida de uma cidade, que tinha visto tempos antes. Mas o Douro, Faina Fluvial, nasceria como obra autónoma e original. Um crítico italiano, Ugo Csiraghi, escreveria muitos anos mais tarde («L’Unità», de 8 de Setembro de 1976): «Nesta curta-metragem, realizada em 1930, há ressonâncias do melhor documentarismo europeu, de Ivens aos soviéticos, de Ruttmann a Grierson, mas revistas e elaboradas com tal força e originalidade que fazem de Manuel de Oliveira um artista que só a si próprio se assemelha.» Manuel de Oliveira não sabia ainda como manejar uma máquina de filmar. Para operador convidou, então, um amigo, António Mendes, guarda-livros de profissão, grande apaixonado por fotografia. E deitaram mãos à obra, aos poucos. Foi um autêntico trabalho de amadores, mas feito com a proficiência de profissionais experimentados. Foi ainda António Mendes ― que se revelou um operador excepcional mas nunca quis trocar a estável profissão de guarda livros pela incerta profissionalização cinematográfica ― quem revelou uma grande parte do negativo de Douro, Faina Fluvial, servindo-se de meios rudimentares num laboratório improvisado numa das dependências da fábrica dos Oliveiras. 

A certa altura, a operação revelou-se extremamente difícil, razão pela qual outra parte do filme foi mandada para um laboratório de Lisboa. Muitos anos mais tarde, foi ainda numas dependências da velha casa da Rua 9 de Julho, hoje demolida, que Manuel de Oliveira instalou um pequeno estúdio, muito bem equipado com material que mandou vir expressamente de Itália, num momento em que pensou tornar-se autónomo, com a vaga esperança de criar um núcleo de produção onde outros pudessem também vir trabalhar, fugindo, assim, aos altos custos dos laboratórios de Lisboa. Foi lá que ele fez a montagem de Acto da Primavera, O Pão, e Caça (imagem e som). E ali enterrou muito dinheiro em bom material técnico e no isolamento de uma sala para gravações. Tudo seria obrigado a vender num momento difícil da sua vida ― que não foi sempre tão «de rosas» como tantas vezes se quer fazer crer... O advento do sonoro tinha acabado de dar-se, mas Douro, Faina Fluvial era ainda um filme mudo e foi assim que foi exibido no Salão Foz, em Lisboa, no decorrer do Congresso Internacional da Crítica. Esta ante-estreia foi um escândalo. Perante a surpresa dos congressistas estrangeiros, os espectadores portugueses, na sua maioria, vaiaram ruidosamente o filme. 

O tema, o ritmo, a montagem rápida de algumas sequências, irritaram o público (em grande parte selecto e burro). A projecção foi sublinhada por constantes assobios e terminou com uma estrondosa pateada. Ao intervalo e, ainda, já terminado o espectáculo, muitos espectadores e alguns dos críticos (!?) portugueses ferviam de indignação: «um sem jeito aquelas imagens vertiginosas! uma vergonha mostrar a estrangeiros aquelas mulheres enfarruscadas, com carretos de carvão à cabeça, de pé descalço... aquelas nojentas vielas do Porto... aqueles prédios leprosos do Barrêdo... «(Parece que ninguém se indignou por existirem aquelas desumanas condições de trabalho dos carregadores do porto... parece que ninguém se indignou por se viver ainda em péssimas condições de habitação e salubridade no velho, degradado e populoso bairro do Barrêdo...). Manuel de Oliveira, que ninguém ali conhecia, andava no meio daquela gente. Socavam-lhe os ouvidos os indignados desabafos. E sorria. O sentido do humor foi sempre uma das suas qualidades. 

3. Ao contrário das reacções desfavoráveis que o filme tinha levantado entre portugueses, o reputado crítico francês Emille Vuillermoz não tardaria em publicar, no «Temps», um artigo sobre Douro, Faina Fluvial, em termos muito lisonjeiros. A certo passo desse artigo, escreveria: «Nunca o patético novo da arquitectura do ferro e a poesia eterna da água haviam sido traduzidos com tanta força e inteligência.» («Le Temps» ― 3/10/1931). Depois, veio Avelino de Almeida (que foi director da revista «Cinéfilo») remar, quase a medo, contra a maré da generalizada nacional-indignação. Abertamente vieram defender o filme: José Régio, na «Presença», e Adolfo Casais Monteiro, na revista «Movimento.» a estes dois poetas e a mais meia dúzia de amigos mostrara Manuel de Oliveira o seu filme depois da «corrida» que tinha levado em Lisboa. Destes recebeu, naquela altura, as únicas manifestações de apreço e encorajamento. 

E a fita voltou para as latas onde ficou «esquecida» por uns anos. Douro, faina fluvial viria finalmente a público, no circuito comercial, por acordo com H. da Costa, para servir de complemento ao filme Gado Bravo, de que aquele ex-distribuidor de filmes era produtor. Foi isso em 1934. O filme tinha sido sonorizado, o que lhe alterou ligeiramente o ritmo. Quando da sua primeira apresentação no Porto, no S. João-Cine, acolheram-no com palmas espontâneas e calorosas. Depois... o tempo foi passando, e Douro, faina fluvial resistiu. O que só acontece com as autênticas obras de arte. 

Em Douro, faina fluvial Manuel de Oliveira não se limitou a pousar o olhar sobre a vida e a faina ribeirinhas. Na descrição do trabalho e das duras condições de vida dos trabalhadores da beira-rio há implícita uma denúncia. Mas há também um intenso sopro de poesia, a captação de uma profunda palpitação humana. O rio, a ponte, os cais, as ruelas, os negros recantos do Barredo e da Ribeira são o cenário e o lugar onde aqueles homens e mulheres vivem e labutam. Mas o rio, a ponte, os cais, as ruelas, pulsam e vivem também, ao ritmo das horas, tratados por uma câmara inquieta, lúcida, observadora, atenta, respeitadora... que não procura o «pitoresco», antes dele se esquiva para descobrir e registar uma realidade social. Toda a enorme força de Douro, faina fluvial está nessa realidade colhida ao vivo sem disfarces, «em que a moderna poesia do ferro e do aço, a tonalidade das horas, a alegria e a miséria do homem sócio do animal na luta pelo pão de cada dia ― tudo, ao longo de um dia de actividade na margem do Douro, nos é dado com uma verdadeira grandeza» (José Régio). 

Rodrigues de Freitas, colaborador de «Presença» e autor de um conto que serviu de inspiração a Manuel de Oliveira para o Aniki-Bóbó, escreveria na revista «Movimento»: (...) «Nasce o dia e recomeça a faina; tudo ali surge em movimento, no ritmo da azáfama e das horas que vão correndo; o trabalho começou; e cresce e a vida explude em acção, em força e luta; serena chegou a hora do almoço e do descanso ― e há como que uma síncope. Depois, de novo a faina volta..., a vida retoma a intensidade das primeiras horas do dia, até que o cansaço chega, os homens vergam e as pernas fraquejam, enquanto que na natureza, à volta, desce a calma e a solidão. O artista-realizador, poeta, vai visualizando os estados de alma, no homem e na natureza; os dois elementos decorrem fundidos, em ritmos correspondentes, em permanente simpatia. Acompanhando-se nas horas que deslizam, a vida do rio e a do homem, penetram-se, completando-se. Douro, faina fluvial aparece-nos assim como um filme de essência profundamente poética, mas não é só isso. O filme abandona aqui e ali aqueles estados de alma de que falei, e aponta, frisa, marca, quase discute, problemas de ordem social. Façam presente, na memória, os paralelos entre o trabalho do homem e o da máquina e veja-se, de facto, se não há ali dialéctica social... Filme de inquietação e significação. Toda a obra que significa é ― e Manuel de Oliveira dá-nos uma obra de arte autêntica, pelo mundo de sugestões que provoca, emoções e ideias que desperta. (...) Um filme que vive pelos elementos essenciais da arte: criação e expressão, neste caso, pela sua visão e pela sua montagem.» 

Por seu turno, na «Presença» (n.º 43 de Dezembro de 1934) o poeta José Régio escreveria: «O Douro é uma pequena obra-prima; é um milagre não só de sensibilidade e inteligência ― também de persistência, independência e vontade, dons que tanto nos faltam (...) Precioso como documentário, o Douro excede e em muito o valor de um mero documentário. Nem um documentário se volve em obra de arte senão na medida em que, sem deixar de documentar o que pretende documentar, é, também, documento de um temperamento de artista. Manuel de Oliveira é artista e poeta, no alto sentido em que, afinal, estas duas palavras são sinónimas. E não é tão fácil de ver que era isso o que ainda não aparecera no nosso cinema? Conseguir boas imagens e uma boa montagem segundo processos mais ou menos conhecidos, em mira a efeitos de agrado mais ou menos seguro, é, talvez, relativamente fácil; porque é questão de aprendizagem e experiência. (...) Mas o que já deixa de ser matéria de aprendizagem para ser manifestação duma vocação própria, é conseguir esse halo poético, o transmitir essa vibração humana, que revelam realmente artista (tão artista como o mais sincero cultor de qualquer outra arte) o realizador dum filme. E eis, entre nós, a grande novidade do Douro: ser uma obra de arte.» 

Informação retirada de Breve História do Cinema Português (1896-1962) de Alves Costa

História do Cinema em Portugal - Leitão de Barros - Esperança e Desilusão do Cinema Português


1. Em 1930 as atenções estavam todas voltadas para Leitão de Barros. Maria do Mar, situando-se logo após um período de decadência da produção nacional, tinha vindo colocar-se dignamente na primeira fila de toda a cinematografia portuguesa e apresentava-se (pelo menos aparentemente) como uma procura de estilo. «Nesse filme ― escreveu Roberto Nobre ― «havia uma inusitada densidade, um poder plástico tendendo mais à sobriedade rude do que ao bonito, uma avaliação do sentido dramático e humano, arrancando às máscaras vigorosas, curtidas pelo sol e pelo sal do mar da Nazaré, um carácter cheio de genuinidade.» 5  Homem de múltiplas facetas, Leitão de Barros dispersa o seu entusiasmo, os seus interesses, as suas capacidades e a sua constante inquietação por diferentes actividades: «Pinta, ensina, pronuncia conferências, escreve crónicas e artigos (dirá Acúrsio Pereira) que têm a marca desse talento singular que lhe atribuiu no berço uma ronda ingénua de fadas protectoras. Comenta com bom humor no artigo de fundo, palpita na reportagem, sorri trocista nas entrelinhas do «éco» jornalístico.» Faz cinema ― com dois ou três momentos fulgurantes ― e organiza históricos com o mesmo jeito com que movimenta centenas de figurantes no écran. 

Talvez esta dispersão, estes vários e desiguais talentos, tenham, afinal, pesado negativamente na sua obra cinematográfica, muito desigual, que transita do realismo poético para o populismo e daí para o «film d’art». Desde A Severa ao estenderete que foi Vendaval Maravilhoso, passando por Ala-Arriba e Camões, a filmografia de Leitão de Barros é um zigue-zague constante, com altos e baixos dentro mesmo de cada obra. Mas, sem Maria do Mar, Nazaré, Lisboa e A Severa, talvez o cinema português não tivesse ganho fôlego para uma nova arrancada. E nessa arrancada Leitão de Barros teve papel relevante. Lança-se nela com a decisão do pioneiro e com o espírito de quem parte para uma maravilhosa aventura. Quando filma Nazaré, quando realiza Maria do Mar, supera com engenho os problemas da falta de meios técnicos. 

Com entusiasmo feito de amor pelo cinema. Com plena consciência de que o cinema, em Portugal, é, nessa altura, uma actividade artesanal no meio de carências de toda a espécie. Ele próprio dirá: «Entre nós ,o cinema quase sempre é para o realizador a arte do equilíbrio sobre renúncias e o autor de cinema, é, apenas, um arrojado equilibrista.» Anima-o, também, uma ingénua fé no futuro da nossa cinematografia: «Acredito num cinema português ― dirá ele numa conferência pronunciada em 1948 ― porque acredito na eternidade deste grupo parecido que somos nós, mandriões pescadores que nos deitamos ao sol da praia na certeza do peixe de amanhã, que somos capazes de muita asneira e de muita coisa bem feita, que somos, enfim, uma raça; isto é, que levamos sobre alguns outros povos esta vantagenzinha apreciável: conhecermo-nos uns aos outros, de gingeira, há oito séculos! E, graças a Deus, damo-nos mal.» Entusiasta pelo cinema, que viu nascer e que o atrai desde os bancos do liceu, Leitão de Barros olha com confiança a consolidação de um cinema nosso com traços próprios e as marcas das nossas lusitanas particularidades (que as teve num cinema de imitação), mas trai as esperanças que alimentou com Maria do Mar, vai perdendo força e espontaneidade, afasta-se do povo e emaranha-se no gosto pelo espectáculo sem realmente acercar-se da Vida ou da Poesia, nem quando trata de Camões, de Bocage ou de Castro Alves. Todos os méritos e defeitos deixou-os logo, vemo-lo hoje melhor do que então, em A Severa, mais um exemplo de cinema voltado para o passado como estava na tradição da nossa cinematografia. 


2. Em 1931, o cinema tornara-se sonoro e falante. A maior parte das vezes falava pelos cotovelos (para dizer muito pouco) e cantava a todo o propósito. Pensou-se, na altura, que o sonoro iria prejudicar a universalidade do espectáculo cinematográfico e favorecer as cinematografias nacionais. Leitão de Barros apercebeu-se logo das potencialidades do cinema sonoro e das grandes possibilidades de êxito que teria o primeiro filme falado e cantado em português. Sem esperar pela criação de um estúdio devidamente equipado, encetou a realização de A Severa, cuja sonorização seria feita em Paris, nos estúdios de Epinay. Júlio Dantas volta, assim, ao cinema português ― e, por via disso, entram no cinema português o fado e os touros, de que dificilmente nos havemos de libertar, mais o marialvismo que lhe está adstrito... A Severa teve um êxito invulgar. O filme ia ao encontro do gosto popular, tinha de tudo: as belas imagens da lezíria, as faustosas festas da aristocracia, os fados, as facetas cómicas do Timpanas (a canção interpretada pelo Silvestre Alegrim fez carreira), os confrontos da marquesa com a fadista, as corridas de toiros, um fandango dançado por Francis, a grotesca paixão do Custódia e a morte da Severa cercada por populares envergando trajes regionais de todas as províncias portuguesas (simbolizando Portugal chorando a morte do Fado). 

A adesão do público ao cinema sonoro e o sucesso de A Severa impulsionaram a criação da Tobis Portuguesa, fundada em Junho de 1932, depois de uma campanha que entusiasmou o pais cinéfilo. Centenas de pessoas, cheias de ilusões e de boa vontade, compraram acções daquela companhia, que viria mais tarde a ser absorvida pela Lisboa-Film. Na já citada Quinta das Conchas foi construído um estúdio moderno, projectado pelo técnico francês A. Richard e pelo arquitecto Cottinelli Telmo. (Manuel de Azevedo, in Perspectiva do Cinema Português). O Estado deu também uma ajuda (Decreto-Lei n.º 22.966 publicado no «Diário do Governo» de 14 de Agosto) isentando, durante cinco anos, a Tobis Portuguesa do pagamento das contribuições predial e industrial bem assim como dos direitos de importação de maquinismos, aparelhos e materiais necessários ao estabelecimento da sua indústria. O artigo 3.º do referido decreto, que obrigava «os importadores de filmes sonoros estrangeiros a adquirir, para exibição em Portugal, filmes sonoros portugueses na metragem que for anualmente fixada pelo Governo, em harmonia com as condições da produção nacional», não teve, porém, a desejada aplicação.  O cinema português preparava-se para percorrer uma nova etapa. Acentue-se que para isso ― sobretudo para a criação de um clima de entusiasmo que levou à construção dos estúdios da Tobis ― muito contribuíram o próprio entusiasmo e a acção de Leitão de Barros.

Informação retirada de Breve História do Cinema Português (1896-1962) de Alves Costa

História do Cinema em Portugal - Os Anos Trinta



1. O êxito de A Severa serviu de detonador para uma nova «explosão» de cinema português. Os estúdios da Tobis vão crescendo rapidamente. As revistas cinematográficas batem-se pelo renascimento da produção nacional. Nessa altura são a «Invicta-Cine», o «Cinéfilo», a «Imagem» e o «Kino». É neste semanário, fundado por Lopes Ribeiro, em que colaboram regularmente Artur Portela, Norberto Lopes, José Gomes Ferreira, Olavo d’Eça Leal e André Massil, que vamos encontrar uma estatística dos filmes exibidos em Portugal, em 1930, que aponta para uma nítida «colonização» do nosso mercado pela produção americana: 574 filmes contra 143 franceses, 105 alemães, 19 ingleses, 6 russos, 3 dinamarqueses, 2 brasileiros, 2 mexicanos, 1 sueco, 1 austríaco e 1 japonês. Apesar desta importação maciça, o filme português iria ter, então, muito menos dificuldade em chegar ao público do que cinquenta anos mais tarde, atraindo ainda um número muito razoável de espectadores. Isto foi, talvez enganador e distraiu toda a gente da necessidade de se criarem estruturas e medidas proteccionistas que garantissem mercado e estabilidade para a produção nacional. 

Nos primeiros anos trinta vivia-se uma certa euforia. Enquanto Leitão de Barros pensa num novo filme, gente nova, que traz dos verdes anos um grande entusiasmo cinema, passa decididamente a meter a mão na massa. (Nessa altura ainda sem duplo sentido, muito embora não tarde Leitão de Barros a dizer, na revista «Movimento», que, em Portugal, as gentes de cinema se dividem em duas categorias: «os que amam e os que mamam...»). É, pois, com entusiasmo que se fazem e se aguardam os dois primeiros filmes sonoros totalmente realizados em Portugal: A Canção de Lisboa, de Cottinelli Telmo, superficial mas graciosa «comédia musical à portuguesa» que traz para o cinema esse espantoso actor que foi António Silva (ao lado da Beatriz Costa, do Vasco Santana e de Teresa Gomes, três grandes e populares figuras do teatro ligeiro); e Gado Bravo, que António Lopes Ribeiro realiza com a colaboração do alemão Max Nossek, alternando alguma coisa boa com muita coisa má, numa historieta inventada por um estrangeiro que arranca com algumas das mais belas imagens do Ribatejo jamais filmadas (a fotografia foi de Heinrich Gartner) e acaba por meter de tudo um bocadinho numa salgalhada de folhetim sentimental, em que os campinos são apenas a nota folclórica... Os dois filmes ― ambos estreados em 1934 ― foram muito bem acolhidos. Um esperançado optimismo reinava no mundo afecto ao cinema. Cottinelli Telmo não voltaria a filmar. Deixou, no entanto, um modelo de comédia (com algumas raízes no Parque Mayer) que, ao longo dos anos, viria a ser retomado com variantes menos felizes, de humor igualmente tranquilizante, assentes no talento e na popularidade de excelentes actores de teatro. De A Canção de Lisboa (em que aparece Manuel de Oliveira num papel secundário) ficou, sobretudo, uma cena de antologia: a eleição de miss costureira na associação recreativa de bairro. Cottinelli Telmo, que foi um dos bons arquitectos do seu tempo, e dirigiu a revista infantil «Abêcêzinho», faleceu em 18 de Setembro de 1948. Outros nomes vão aparecer. Jorge Brum do Canto, que ensaiara os primeiros passos cinematográficos com duas curtas-metragens «vanguardistas» (A Dança dos Paroxismos e Paisagem), surge em 1935 ao lado de Leitão de Barros numa segunda transposição para o cinema do romance de Júlio Dinis: As Pupilas do Sr. Reitor. Assina a planificação e trabalha nesse filme como assistente de realização. Essa segunda versão das Pupilas é ainda uma ilustração da obra literária, com algumas variantes e fugazes momentos de investigação plástica. Mais uma vez (e não seria a última) a obra literária é pegada pela rama, sem grande inspiração. Outro nome é Chianca de Garcia, recém-conquistado pelo cinema (que chegou a afirmar não ser uma arte), que em 1936 dá o seu grande passo, saltando do incipiente Ver e Amar para O Trevo de 4 Folhas e daí para Aldeia da Roupa Branca (1938), ambos com Beatriz Costa. Musicados e cantados, como era corrente na época, procuram sobretudo o entretenimento do espectador. No entanto, Aldeia da Roupa Branca, com algumas influências, aqui e ali, do cinema americano, apresenta-se com razoável desembaraço narrativo e uma certa frescura sacudida pelo dramatismo da corrida das carroças. O filme podia ser tomado como uma promessa, mas Chianca de Garcia ficou por aqui. Afirmar-se-ia muito mais como brilhante cronista do que cineasta. Artur Duarte ― homem já calejado no cinema, como actor de papéis secundários, em filmes alemães e filmes portugueses ― vem também tentar a sua chance como realizador, trazendo de novo para a tela Os Fidalgos da Casa Mourisca, com muito menos engenho e rigor do que George Pallu nos tempos do cinema mudo. Entretanto, Leitão de Barros faz mais dois filmes: um Bocage, com vistosa mise-en-scène, que inaugura o seu «cinema pseudo-histórico» de grande espectáculo (à escala portuguesa), e uma transigente comédia musical: Maria Papoila, dentro do tolerante «gosto popular». É do mesmo ano o primeiro filme «político» português, feito mais por oportunismo do que convicção por António Lopes Ribeiro, segundo um «pitoresco» argumento de Jorge Afonso e Baltazar Femandes. Chamou-se ele: Revolução de Maio. Se não me engano e a convicção não era tão pouca como isso ― nessa altura Lopes Ribeiro tinha-se alistado na Legião Portuguesa ― então o realizador, ao servir o fascismo, animando uma intentona de folhetim que não tinha nada que ver com a resistência ao regime, serviu-se mal do cinema e mal serviu o que pretendia servir. Mas talvez tenha servido a Lopes Ribeiro para, mais tarde, fazer, com enorme largueza de meios, um fastidioso Feitiço do Império. O que, ambos somados, não deu para um autêntico cinema político de exaltação salazarista e imperialista. O regime não produzia, por aqui, fruto que se espremesse... António Lopes Ribeiro nasceu em 1908. Exerceu o jornalismo e a crítica cinematográfica desde os princípios dos anos vinte. Fundou e dirigiu três revistas de cinema: «Imagem» (1928), «Kino» (1930) e «Animatógrafo» (1933). Realizou oito filmes de longa-metragem e cabazada de documentários de propaganda, dentro do espírito do SNI (isto é: como documentarista «oficial» do regime) e mais uma dezena deles, menos comprometidos, sobre monumentos, artes e indústrias. Durante cerca de três décadas, Lopes Ribeiro estará presente em cada dobrar de esquina do cinema português. Dinâmico, arguto e empreendedor, espelha-se nas suas múltiplas actividades e intervenções, raramente desinteressadas, nem sempre coerentes, muitas vezes contraditórias. (Tão depressa é capaz de deitar foguetes à jovem República espanhola ― ver «Kino», n.º 52 ― como dar vivas ao Estado Novo português; exaltar os filmes de Charlot, como desencadear um ataque feroz a Charles Chaplin.) Crítico cinematográfico, cronista, cineasta, produtor de filmes, encenador de teatro, com bedelho metido em (ou por trás de) quase tudo quanto ao cinema em Portugal diz respeito, com uma personalidade complexa e pronta capacidade de acção, António Lopes Ribeiro foi paladino de boas e de más causas. No meio dos seus acertos, desacertos, opções e reviravoltas, nem tudo é de rejeitar de entre tantas coisas em que se meteu. É no conjunto de tudo isso que deverá ser julgado. Retomando um dizer (já aqui citado) de Leitão de Barros, direi que Lopes Ribeiro amou sinceramente o cinema e mamou da teta dele alegremente. Depois de Revolução de Maio e de Feitiço do Império, António Lopes Ribeiro saltou para a comédia satírica (O Pai Tirano, feito, no parecer de Félix Ribeiro, «com malícia, com carinho e bom humor», numa tentativa de tomar um jeito, menos subtil, à René Clair) e daí passou para as adaptações de obras literárias, trazendo de novo ao écran Camilo, Eça de Queiróz e André Brun. Com algum acerto mas sem grande imaginação recriadora, essas obras balançaram entre, o cine-teatro conscientemente assumido e a ilustração (aliás cuidada) de uma narrativa pré-existente. Nos casos de Amor de Perdição (1943) e de O Primo Basílio (1959), os personagens de Camilo e de Eça tomaram configuração física mas perderam densidade humana, social e psicológica. E passou-se por alto pela possibilidade de, pelo menos, esboçar a pintura de uma época e de uma sociedade (o que, de resto, não estava nos propósitos primeiros do realizador). No entanto, os filmes de Lopes Ribeiro ― nestas abordagens da Literatura e do Teatro ― foram degraus que se procurou franquear, característicos da lenta caminhada duma incipiente cinematografia, mesmo quando aplicado algum cuidado, alguma ambição e boa vontade... Não quero, porém, adiantar-me mais sobre o tempo. Estávamos no fim dos anos trinta. Voltemos lá e retomemos o fio cronológico dos acontecimentos. 


2. Por vezes com um só filme de longa-metragem por ano, por vezes com três ou quatro, o cinema português lá vai andando, pé aqui, pé ali, inseguro do futuro que o espera, sem rumo certo a que aproar. É aqui que surge Brum do Canto com A Canção da Terra, cujo lirismo e pureza de meios a tornaram uma película memorável. A propósito deste filme escreveria Nobre: «A austeridade de processos não exclui haver pancadaria a mais e uma canção amena. O lirismo atinge o excesso quando o martírio do Pai é, simbolicamente, coroado por uma auréola. Mas tudo isso é secundário ante a ternura e humanidade com que é visto o povo na sua luta ante a Natureza adversa, no seu amor simples, no seu heroísmo humilde ― naquela seca que nos convence, naquela expectativa ante as nuvens que passam, naquele belo e tão enternecido casamento místico e simbólico, com o anel do cajado, ante as ruínas de uma ermida. Há verdade, poesia, sinceridade, dignidade, sem esquecer a linguagem estética duma obra de arte.» (in Singularidades do cinema português). A Canção da Terra parecia continuar uma via apontada por Maria do Mar e a muitos levou a depositar grandes esperanças em Brum do Canto e num cinema que cada vez mais se aproximasse do povo português, de uma realidade bem portuguesa que, através da sua particularidade, atingisse o universal. Mas, «quando lógico parecia deverem os cineastas insistir nessa via (escreveria ainda Roberto Nobre) logo a abandonaram e foram experimentar o enjoativo filme histórico, a comédia mais ou menos americanizada e, no maior número de vezes, com o faduncho e o popular pejorativo». Em certo momento da história do nosso cinema, os filmes mais prometedores nasceram de um impulso criador, de um entusiasmo sem premeditação, de amor pelo próprio cinema e revelaram boas faculdades dos seus autores. «Mas logo também renunciaram, negligentemente, a essas suas boas faculdades.» E cito novamente Roberto Nobre: «A inquietação intelectual descobre os segredos da arte do cinema e só mais tarde o negócio vem aproveitar-se disso. Em Portugal o cinema nasceu ao contrário. Pode mesmo dizer-se que, mesmo antes de haver cinema, houve logo o negócio de se fazer cinema. Nunca houve D. Quixote, mas sempre a sensatez ambiciosa de Sancho. Nunca pretendeu ser um sonhador ingénuo. Quis logo ser prudente, prático e lucrativo.» (Entre parêntesis, direi que D. Quixote acabou por aparecer e se afirmar entre os cineastas portugueses. E estou a pensar, evidentemente, em Manuel de Oliveira). A trajectória de Brum do Canto veio dar razão àquelas palavras de Roberto Nobre. Se exceptuarmos Lobos da Serra (1942), as concessões vão-se acentuando na obra deste cineasta: João Ratão (1940), Fátima, Terra de Fé (1943), Um Homem às Direitas (1944), Ladrão Precisa-se (1946). A sua intuição e as suas reais capacidades «dispersaram-se por experiências em todos os sentidos e as mais perigosas», dirá ainda Roberto Nobre, «mas permitem-lhe atingir frequentemente bom nível cines tético quando as concessões o não perturbam». O mal é que o perturbam frequentemente... As concessões e as convicções. O que não retira ao conjunto da sua obra um evidente relevo dentro do cinema português dos anos 40/50. 


3. Note-se que, à data de A Canção da Terra (1938), as inquietações e ideias renovadoras que agitam as Artes Plásticas e as Letras não têm reflexo no cinema português. Mas é de assinalar o interesse e a atenção que ao cinema dedicam revistas e jornais como «Presença», «O Diabo», «Sol Nascente», «Seara Nova». Alguns poetas escrevem mesmo sobre cinema: José Gomes Ferreira, António Botto, José Régio, Adolfo Casais Monteiro (estes dois na «Presença» e na revista cinematográfica portuense «Movimento», fundada por Armando Vieira Pinto em 1933). Mas os intelectuais não têm força suficiente para imprimirem novos rumos ao cinema nacional, que não se consolida nem como forma de expressão artística nem como indústria, e lá vai seguindo conformado e conformista, quietinho e bem comportado... Mas não tão inocente como isso. Na aparência de querer «não ter nada com a política» (o cinema é para a gente se entreter, rir um pouco, chorar um bocadinho, não é?...) esse cinema, com raras excepções e por muito tempo, irá funcionar perfeitamente dentro da política do regime: espelhar a imagem e os modos que se pretende fazer crer que são os deste bom povo ― probrete mas alegrete, sentimental e marialva, com oito séculos de história e um império (a respeitar), conformado e feliz com a sua simplicidade, a sua ração diária de alpista, a festa brava, o fado e o sol sobre o Tejo. E se não dança o vira, vai nas marchas do Santo António, sem complexos, sem inquietações ou angústias, sem interrogações ou revoltas, sem outros problemas senão os que se resolvem com uma conciliação, uma conversão ou um casamento. A censura viria, depois, zelar por que essa imagem não fosse perturbada. 

4. No fim dos anos trinta, Manuel de Oliveira estava «arrumado». Por força de circunstâncias adversas, o cinema português foi desfalcado de obras que poderiam ter ficado como retrato fiel de um povo, de uma época e de determinados extractos sociais. Que seriam, também, obras de investigação formal. Por volta de 1933/34, Manuel de Oliveira chegou a acariciar um grande projecto que esteve a pontos de se concretizar: um documentário de longa-metragem, romanceado, sobre o Vinho do Porto ― vasto e imponente fresco da vida rude, ingrata, sem amanhã, dos trabalhadores da região duriense cujo suor e labor de escravos foi enriquecendo produtores, armazenistas, exportadores. Chamar-se-ia Gigantes do Douro. O Instituto do Vinho do Porto devia subsidiá-lo. Mas não gostou da maneira como Manuel de Oliveira abordava o assunto... e roeu a corda já depois de assinado um contrato. Outros filmes se frustraram: Luz (ensaio vanguardista puramente visual), Roda (curta-metragem de enredo de feição surrealista), A Mulher que Passa (comédia dramática que seria uma procura de novos meios de expressão cinematográfica com subtis notas de humor e de sátira sobre a burguesia desportiva e boémia do Porto) e Prostituição (filme do underground urbano, inspirado em casos e pessoas verídicos, obra de análise de sentimentos, situações e comportamentos, dentro de uma realidade clandestina: as «casas de passe», as ruelas suspeitas e a sua vida oculta, os «cabarets», os bares, tendo por detrás a paisagem humana e social de uma cidade (o Porto) e de uma época (os primeiros anos trinta). Mas estava escrito: depois do Douro, Faina Fluvial, Manuel de Oliveira teria de esperar dez anos para encontrar uma nova oportunidade de filmar! Surgiu essa oportunidade quando lhe ofereceram os meios materiais para rodar um despretencioso documentário sobre Famalicão, que ele aceitou fazer, sobretudo, pelo gosto de voltar a manejar uma câmara de filmar. Logo a seguir, António Lopes Ribeiro (que tinha criado uma empresa produtora de filmes) oferece-lhe a chance de realizar Aniki-Bóbó, seu primeiro filme de enredo. Verdade se diga, nos meios cinematográficos lisboetas só Lopes Ribeiro «jogaria» na capacidade do jovem cineasta portuense, dando-lhe a mão pela segunda vez... contra a oposição de muita gente. Tinha franqueado o limiar dos anos quarenta, década que viria a dar ao cinema português quarenta e cinco novos filmes e muito pouco cinema... Desse período trataremos a seguir. Caracterizam-no alguns filmes, a publicação da Lei n.º 2027, dita de protecção ao cinema nacional, o aumento da repressão sobre o cinema e a eclosão do movimento cineclubista rigorosamente vigiado. A segunda grande Guerra Mundial tinha posto a Europa em fogo. Muitos refugiados passaram por cá em situações dramáticas. Embora não envolvido directamente no conflito, Portugal não deixou de ser afectado por ele. Por aqui andou também a espionagem. Houve as negociatas do volfrâmio. Um clima de ansiedade e inquietação perturbou-nos muitas vezes. Houve também esperanças que se perderam... O cinema português passou ao lado de tudo isso. Alegremente. Como vai passando, nos anos 40/50, ao lado dos autênticos sentimentos, das carências e revoltas, dos preconceitos, dos hábitos, das aspirações, dos temores, das fraquezas e heroísmos de que é feita a alma da gente portuguesa; o que levará Luís Neves Real a escrever que «foi nos filmes italianos do após guerra (Dois dias fora da vida e Sonhando pelo caminho) que sentiu perpassar uma forte e inconfundível rajada, meio picaresca meio sentimental, mas digna e sempre humana, de vida portuguesa...» que faltava no cinema português. Manuel de Oliveira virá a ser, até ao princípio dos anos sessenta, um caso isolado e totalmente à parte. 

Informação retirada de Breve História do Cinema Português (1896-1962) de Alves Costa


História do Cinema em Portugal - Os Anos Quarenta



1. Logo nos princípios de 1940 dois nomes novos aparecem no nosso nebuloso horizonte cinematográfico: Adolfo Coelho (Porto de Abrigo) e Armando Miranda (Pão Nosso). Não trazem nada de novo. Adolfo Coelho não volta à longa-metragem e faz muito bem. Pelo contrário, Armando Miranda insiste (para pior) com uma Ave de Arribação (1943), um segundo José do Telhado (1945), Capas Negras (1947), com Amália Rodrigues, e outras fitas que degradam mais do que enriquecem a cinematografia portuguesa. Por seu turno ― depois de ter posto a cantar,

à Varanda dos Rouxinóis, Madalena Sotto, uma desconhecida menina de Oliveira de Azeméis que do cinema viria a ser catapultada para o teatro, onde fez carreira ― Leitão de Barros tenta com Ala-Arriba acercar-se de novo da gente do mar. O filme, produzido pela Tobis Portuguesa com subsídio do S. N. I., sai-lhe desarticulado, «com personagens falsas saídas de museu etnográfico» (como dirá Manuel de Azevedo na sua Perspectiva do Cinema Português), ilustrando um conflito que escamoteia os problemas reais, quotidianos, dramáticos, prementes, dos pescadores poveiros. O argumento e os diálogos eram de Alfredo Cortez. Os intérpretes foram autênticos pescadores da Póvoa de Varzim. O sentido plástico de Leitão de Barros, o talento do dramaturgo e a autenticidade dos intérpretes não vieram a somar-se naquele resultado que poderia esperar-se. Foi pena.
Sempre presente e atento, a António Lopes Ribeiro não escapam as propícias circunstâncias que, devido à guerra mundial, se apresentam para a defesa comercial do filme português, com a menor concorrência estrangeira no mercado nacional. Decididamente põe em execução um projecto de produção contínua de que, a curto intervalo, saem três filmes: O Pai Tirano (1941), O Pátio das Cantigas (1942) e Aniki-Bóbó (1942).
O Pai Tirano, realizado por Lopes Ribeiro e O Pátio das Cantigas , realizado por Francisco Ribeiro, duas comédias ligeiras, esquemáticas, com um certo sentido de humor caricatural, apoiavam-se essencialmente na participação de actores com inconfundível personalidade e riqueza de imaginação (Vasco Santana, António Silva, Ribeirinho) colocados em situações que lhes permitiam tirar partido dos frequentes trocadilhos do diálogo. Estas duas comédias inserem-se no que poderíamos chamar «o cinema de bairro», em tom cor de rosa, que teria muitos continuadores. Assim «se foi inventando (como diz Manuel Pina em O Cinema ― Enciclopédia da 7.ª Arte) uma sociedade de gente simples, sã, alegre e trabalhadora, onde as únicas nuvens eram as inevitáveis paixões humanas». Mais tarde virá juntar-se a esta sociedade uma típica figura: o espertalhão à portuguesa, bem disposto, optimista, cheio de recursos, curto de escrúpulos, que não

é figura tão de ficção como isso. Existindo de facto e sempre gozando entre nós de simpatias especiais, voltaremos a encontrá-la ― já inserida noutro contexto ― no cinema moderno (Grande, grande era a cidade e Perdido por cem..., por exemplo).

O terceiro filme desta série de «Produções Lopes Ribeiro» coube a Manuel de Oliveira (em que o realizador teve alguma participação financeira nunca recuperada). Foi assim que ele pôde realizar o seu primeiro filme de enredo e longa metragem: Aniki-Bóbó, após dez anos de espera.

Inspirado num conto de Rodrigues de Freitas («Meninos milionários»), Aniki-Bóbó foi rodado quase totalmente em exteriores (na cidade do Porto), tendo à câmara António Mendes, que mais uma vez deu provas da sua extraordinária competência. A fita ficou concluída em fins de 1942. Quando da sua estreia, o realismo poético de Aniki-Bóbó e as subtis intenções do autor não seduziram o público tanto quanto seria lícito esperar. Uma certa dose de incompreensão marcou, também, muitas críticas da época. No entanto, Rui Grácio escreveria («Horizonte» 13/1/943): «Manuel de Oliveira articulou nesta história alguns dos elementos que constituem parte da vivência psíquica dos garotos daquela idade e daquele viver: o tédio de uma escola arcaica; o medo do polícia; as lendas que envolvem o mistério da morte; o jogo dos polícias e ladrões; o espectáculo sempre novo do comboio que passa. Não se põe o problema da criança. Tarefa difícil. Mais para louvar é a ousadia do cineasta portuense que tem ainda de lutar com a incompreensão de um público pouco disposto a recolher mensagens de ingenuidade e poesia.»

Essa incompreensão atinge o desvario na pena do comentarista do jornal «Cidade de Tomar» (24/1/943) que, indignado, escreverá: «A fita é uma infame cilada à inocência das crianças e à imprevidência dos pais. É uma verdadeira monstruosidade.» Fernando Fragoso, na «Vida Mundial» (7/1/943) espelha também a sua mentalidade e a sua cegueira: «Considerei desde logo a história de Aniki-Bóbó anti-comercial e demasiado literária (...) Procuramos convencer M. de O. que a sua história carecia de verdade humana e que, com outro desenvolvimento que unisse aquelas crianças em torno de uma boa acção, lhes faria perder o ar de “Dead End Kids” tripeiros com vantagem para o espectáculo e a acção construtiva de que o filme português não deve alhear-se.» Serão os poetas aqueles que melhor entenderão Aniki-Bóbó. Assim, António Botto escreverá («Os Sports ― 4/1/943): «De uma grande honestidade, com pedaços de límpido cinema, este filme dá o encanto das coisas despretensiosas e belas, no seu aprumo de simplicidade emotiva recortada duma intenção social irónica e popular.» Por seu turno, Adolfo Casais Monteiro terá estas palavras: «O caso de Manuel de Oliveira é único na nossa cinematografia. Tem o cinema na medula dos ossos, e o seu silêncio é o preço da autenticidade da sua vocação. Tanto Douro, Faina Fluvial como Aniki-Bóbó nos dão bem a medida dessa vocação e do que o cinema português podia ter ganho caso tivesse sido possível a Manuel de Oliveira exercer uma actividade regular. O seu caso é único porque ele é, até hoje, o único que parte da imagem cinematográfica e não tentou fazer da imagem uma ilustração de ideias “literárias”, vendo ao mesmo tempo no cinema uma forma de comunicação humana. (...) O seu sentido da realidade orienta-se simultaneamente para a verdade humana e para a pureza da imagem.» (Citado no «Programa» n.º 38 do Cine-clube de Estremoz).

Depois de Aniki-Bóbó, o cinema português, durante largos anos, não voltou a ter poesia. Mas voltou, frequentemente, à laracha do Parque Mayer, ao folclore de pacotilha, às lamechices do fado (com fado ou sem ele), à história moralizante e à «reconstituição histórica» (a que os espanhóis chamam com humor «cinema de barbas») . Para Manuel de Oliveira seguiram-se mais 14 anos de inactividade cinematográfica e de esquecimento. O filme viria a ser «ressuscitado» em 1954 pelo Cineclube do Porto e foi, para muitos, uma surpresa. Ali encontraram, com espanto, a antecipação do «realismo mágico» do cinema italiano do após-guerra. O mesmo espanto eu encontrei numa plateia francesa quando o filme foi exibido em Nice, numa Semana de Cinema Português ali levada a efeito muito mais tarde. Na altura em que o filme foi «ressuscitado», Manuel de Oliveira, solicitado a pronunciar-se sobre ele, diria: «Pretendi espelhar nos garotos os problemas do homem, problemas ainda em estado embrionário; pôr em oposição concepções do Bem e do Mal, o ódio e o amor, a amizade e a ingratidão; sugerir o medo da noite e do desconhecido; reflectir a atracção da vida que palpita em todas as coisas à nossa volta, contrastando com a monotonia do que é fechado, limitado por paredes, pela força ou pelo convencionalismo.»

Em 1944, Manuel de Oliveira acarinhou ainda o projecto, de fazer um filme que se intitularia Saltimbancos e que seria a pintura dramática e poética do mundo do Circo, visto, também, como o espelho ou o símbolo do mundo sem repouso em que vivemos. O projecto gorou-se mais uma vez. Desgostoso, Manuel de Oliveira desvia-se do cinema e aplica a sua atenção e as suas actividades noutros campos. Entretanto, outros filmes vão aparecendo. O que dá uma certa animação ao nosso panorama cinematográfico.


2. Artur Duarte reaparece com uma comédia: O Costa do Castelo, que é um êxito comercial, e António Lopes Ribeiro apresenta uma nova versão, ilustrativa mas bastante equilibrada, de Amor de Perdição, que, se não fez chorar os espectadores sensíveis tanto como a versão de George Pallu, ainda hoje (verifiquei-o numa reposição recente) exerce certa atracção sobre um público que continua a ser sensível a histórias lineares e românticas que o comovam. Lopes Ribeiro elaborou uma «planificação» muito direitinha, saltou com agilidade alguns escolhos da adaptação e encheu de acção as soluções de continuidade do romance... que ficou um bocado foto-novela, sem ofender Camilo Castelo Branco. Depois de Camilo, Lopes Ribeiro passará para André Brun, realizando (mesmo em cima da peça) A Vizinha do Lado. E enquanto Brum do Canto puxa à lágrima e ao milagre (Fátima, Terra de Fé) e à dignidade (Um Homem às Direitas) ― o que não deixa de nos recordar os filmes de Feuillade, para a Gaumont ― Artur Duarte prossegue, com A Menina da Rádio, num género que se destina a um razoável sector do público que, hoje, podemos comparar ao que, agora, faz o êxito dos filmes indianos... É a contar com esse público pouco exigente que outras fitas vão formando os degraus da nossa história cinematográfica. Negativos (quase sempre para ela), positivos (as mais das vezes) para os que os fazem, como é o caso de Henrique Campos, que se apresenta com Um Homem do Ribatejo e vai por aí fora em partos sucessivos «para servir o gosto do público com fitas lineares que toda a gente entende» (remoque do cineasta obviamente endereçado aos que, em 64/66, tiraram o nosso cinema da vil tristeza artística em que se encontrava). Por seu turno, Leitão de Barros ― dispondo de meios avultados ― realiza Camões (1946), em grande estilo e em dois «tempos»: uma primeira parte desenvolta e movimentada, uma segunda parte majestosa e pesadona ― obra irregular e exterior que, na altura, deu ares de coisa importante. Adolfo Casais Monteiro (e volto a citar um poeta) comentaria: «Leitão de Barros veio da pintura para o cinema e não conseguiu, talvez por nem sequer o ter procurado, vencer algumas limitações que daí resultam. Viu sempre os seus filmes como uma sucessão de quadros “bonitos”; falta-lhe primacialmente uma visão cinematográfica. Cada filme seu faz-nos lembrar sempre que ele é um especialista na organização de cortejos ... O seu sentido de valores plásticos permite-lhe trabalhar uma matéria já feita, como é o caso de Camões, com relativa felicidade e grande êxito entre o público que se comove com uma história por conta do mito nela contido, sem que de todo em todo lhe pese a ausência de real matéria cinematográfica.» 7

Outra gente vem tentar a aventura do cinema (entre ela uma mulher: Bárbara Virgínia, com Três Dias sem Deus). Com mais boa vontade do que engenho, à espreita de um êxitozinho de bilheteira, cada um trazendo consigo uma nova frustração. Talvez tenha sido Artur Duarte a averbar melhores resultados junto de um público que deseja essencialmente divertir-se e que ele realmente divertiu com O Costa do Castelo e O Leão da Estrela. Mas, atenção: estas comédias amavelmente satíricas, com momentos bastante divertidos (a que não foi alheia a participação de excelentes actores do Teatro) são obras «acomodadas». O texto original de O Leão da Estrela, por exemplo, foi despolitizado (como hoje se diria), o que é uma forma de servir uma certa política... ou uma certa estratégia, para estar de bem com os poderes instituídos e a censura.

3. Com data de 18 de Fevereiro de 1948 é promulgada a Lei n.º 2.027, de protecção do cinema nacional. Diz assim o seu Art.º 1.º: «A fim de proteger, coordenar e estimular a produção do cinema nacional e tendo em atenção a sua função social e educativa, assim como os seus aspectos artístico e cultural, é criado o Fundo do cinema nacional.» António Ferro, da sua posição oficial, explicaria, num discurso (que veio a ser contrariado pelas acções que posteriormente se viram), que o Fundo «será para ficar à disposição dos devotos do cinema nacional e não dos seus exploradores». E diz como e quem pode recorrer a esse Fundo: produtores e realizadores de: «a) filmes regionais ou folclóricos, quando as planificações não sejam mesquinhas, catitas, demasiado vestidas à moda do Minho; b) filmes históricos, porque tal cinema se for elevado nos eleva sempre; c) filmes policiais de boa urdidura; d) filmes extraídos de romances ou de peças, conforme o romance ou a peça e conforme a planificação (note-se a ambiguidade desses conforme); e) documentários que se proponham, com boas garantias, filmar certas obras do nosso renascimento ou aspectos das paisagens, cidades e monumentos do nosso país; f) filmes de essência poética; g) filmes do nosso quotidiano». E mais adiante, no mesmo discurso, António Ferro afirmara: «Não serão filmes de êxito comercial garantido, mas foi para eles, precisamente, que se criou o Fundo Cinematográfico Nacional que os ajudará a travar a batalha necessária, indispensável, para reabilitar o cinema português e elevar o nível do gosto do público.» Logo a seguir, António Ferro lembra os filmes cómicos, que também poderão aspirar a auxílio do Fundo «quando se tratar de comédias amáveis ou até de bons costumes populares, mas não explorem o que há ainda de atrazado, de grosseiro, na vida das nossas ruas ou no porte de certas camadas sociais», e não incluam «expressões de calão, gostos ou atitudes de bruteza».

Como se vê... por um lado, palavras prometedoras que a realidade não confirmaria (enquanto Manuel de Oliveira via retidos e sem auxílio projectos de filmes como Angélica, filme de essência poética, mas com muitas implicações que não agradaram ao SNI; como Pedro e Inez, filme de carácter histórico, mas fora dos moldes esteriotipados; A Velha Casa, recreação de um romance de Régio; O Bairro de Xangai, filme do quotidiano... num bidonville do Porto, ― muito dinheiro foi posto em mãos inábeis para a realização de mistelas de todo o tamanho; e não foi só Manuel de Oliveira a ser desfavorecido: outros o foram também, incluindo alguns dos beneficiados que pagaram com concessões o que receberam em financiamentos...); por outro lado, ausência total de criação de estruturas para garantia de expansão e colocação do produto nacional no mercado interno. Em vez disso, a Lei estabelecia a obrigatoridade de exibição de filmes portugueses de grande metragem «na proporção mínima de uma semana de cinema nacional por cada cinco semanas de cinema estrangeiro, independentemente do número de espectáculos semanais» (...) «na medida em que o número de filmes nacionais o permitir». (Cap. V ― Art. 17.º). Esta disposição nunca foi rigorosamente cumprida e acabou por ser desrespeitada. Nem sequer era realista.

No discurso de António Ferro apontam-se os critérios a adoptar para a concessão de subsídios. É de notar o espírito subtilmente restritivo que os deverá informar, traduzido naqueles «conforme», «com boas garantias», «desde que», ou na referência a «comédias amáveis», a «bons costumes», etc.

Quando a Lei baixou à Assembleia, já estava aprovada por Salazar. A Assembleia só tinha que dizer sim, e estava o caso arrumado. Mas deu-se, então, um caso inesperado. Um novo deputado, o Prof. Mendes Correia, julgando ainda que uma Lei posta à apreciação da Assembleia Nacional seria para estudar, discutir e corrigir, procurou documentar-se, consultou várias pessoas ligadas às actividades cinematográficas e foi para S. Bento levantar os seus reparos e expor algumas dúvidas que diversos pontos do diploma lhe suscitavam. Nesse mesmo dia, ou no dia seguinte, logo alguém (A. Lopes Ribeiro sabe quem foi...) procurou o Prof. em casa de seu irmão, onde estava hospedado, com a incumbência de o convencer (primeiro) das qualidades e vantagens da Lei e (em última instância) o avisar de que «Salazar queria a Lei aprovada depressa, melhor seria o Sr. Professor não fazer ondas...» Outro caso típico deu-se a seguir. Roberto Nobre fez e publicou num folheto uma análise desfavorável da Lei. O folheto intitulava-se «O Fundo». Por ordem do SNI, a Pide «visitou» e vasculhou a residência de Roberto Nobre, sendo o folheto apreendido. Com o tempo veio a verificar-se que a Lei não aproveitou ao cinema nacional. E, com o espírito que acabou por informar a sua aplicação, antes serviu para o afundar... Ao contrário do que António Ferro «profetizara», no discurso citado.

As palavras que referi inseriam-se na alocução que Ferro pronunciou quando da atribuição do prémio do SNI ao filme Camões 8. Quase no final, depois de fazer o elogio do produtor (António Lopes Ribeiro) e do realizador (Leitão de Barros): «dois homens de acção e de espírito que se juntaram para uma grande obra de interesse nacional», António Ferro aludiria à presença do filme Camões no Festival de Cannes, onde não recebeu prémio nem nada «porque contra ele se levantaram influências dos comunistas... incapazes de compreenderem o nacionalismo elevado e puro, tranquilo e modesto, de certas nações que se contentam consigo próprias e com os seus limites...» Sempre com costas largas, os comunistas.


4. É ainda no ano de 1948 que surge o movimento dos cineclubes. O primeiro (Círculo de Cinema, de Lisboa) foi brutalmente reprimido pela polícia política. Mas o Cineclube do Porto, fundado em 1945, ganha força em 1948 com a entrada, para a sua direcção, logo após a aprovação dos seus estatutos, de Luís Neves Real, Manuel de Azevedo, Gonçalves Lavrador, Henrique Alves Costa, os irmãos Virgílio Pereira, Mário Bonito e José Borrego. Rapidamente o Cineclube do Porto ultrapassa o milhar de sócios e assume um papel de grande relevância. Outros cineclubes vêm formar-se e colocar-se a seu lado: o Clube de Cinema de Coimbra, o Cineclube Universitário, o ABC Cineclube de Lisboa, o Cineclube Imagem. Deles dirá Manuel Pina (in O Cinema

Enciclopédia da 7.ª Arte): «Os seus propósitos eram claros: encarando o cinema como uma forma de expressão artística e veículo de ideologias, procuravam, através de uma actividade didáctica ― textos, palestras, colóquios ― alertar a generalidade do público para o fenómeno cinematográfico, a sua importância, o papel que desempenhava. (...) O movimento rapidamente se estendeu a todo o país, havendo por volta de 1956, mais de 30 cineclubes em actividade. As consequências foram incalculáveis pois surgiram grupos de pessoas profundamente interessadas no cinema, quer como simples espectadores mais exigentes, quer como intervenientes no processo: alguns tornaram-se profissionais, outros abordaram o campo da crítica, outros ainda permaneceram ligados aos cineclubes e aos problemas da difusão do cinema. Face a este crescente interesse, os próprios Distribuidores acabaram por ser solicitados a arriscar exibir filmes até aí impensáveis; a maioria dos jornais diários entregou a sua secção de crítica quer a especialistas, quer a figuras culturalmente representativas. Era uma bola de neve. Quando, a partir de 1958, a repressão maciça se abateu sobre os cineclubes, era já impossível abafar a semente lançada, e o cinema português acabou por reflectir essa circunstância.»

Entre os cineastas saídos dos cineclubes (e que fariam nome a partir de 1964) poderemos citar, entre outros, José Fonseca Costa, António Reis, António-Pedro de Vasconcelos, Paulo Rocha. Os cineclubes eram também focos de resistência contra uma política de «neutralização», desinformação, embrutecimento, despolitização, em que o regime se empenhava para que tudo, tranquila e conformadamente, fosse aceite segundo as determinações férreas de um homem só. A influência dos cineclubes e, sobretudo, as intervenções atentas e corajosas do Cineclube do Porto, foram decisivas para alguns grandes passos em frente o cinema português, como essa justamente celebrada «Semana do Porto» (promovida pelo cineclube local) de que resultou a criação do Centro Português de Cinema e o auxílio da Gulbenkian para a produção de alguns filmes independentes e descomprometido que, sem isso, talvez jamais se tivessem realizado.


5. Nos fins da década de quarenta aparecem ― ao lado de Artur Duarte, Leitão de Barros, Lopes Ribeiro, Brum do Canto, Armando Miranda, Henrique Campos ― três ou quatro nomes novos (alguns estrangeiros, como Ladislau Vadja e Eduardo Maroto). Não adiantam grande coisa, mas ajudam a manter a produção de longas-metragens entre os quatro e os sete filmes por ano (seis em 1946, sete em 1947, quatro em 1948, sete em 1949), cada qual representando um empreendimento isolado ou uma aventura para que se parte sem meios técnicos e financeiros capazes. Como, nessa altura, ainda o filme português atraía um número razoável de espectadores, às vezes os exibidores davam uma participação financeira (garantida pela receita da exibição do filme na sua sala), o que ajudava a juntar a verba necessária para a produção.

Entre os recém-chegados está Perdigão Queiroga. Estreia-se, no filme de enredo, com Fado, História duma Cantadeira, segundo um argumento original de Armando Vieira Pinto. O filme conta com alguns trunfos: fados de Frederico de Freitas, Frederico Valério e Jaime Santos, com versos de José Galhardo e Silva Tavares, e um atractivo conjunto de intérpretes: Amália Rodrigues, Vasco Santana (num papel fora do seu estilo habitual), António Silva, Eugénio Salvador e Virgílio Teixeira. Queiroga revela- se muito mais hábil e (tecnicamente) mais capaz do que um Armando Miranda ou Henrique Campos, mas é um cineasta com limitações culturais e uma concepção de cinema demasiado comercial, circunstâncias que acabarão por tolhê-lo. De tudo isto não deixará dúvidas quando, em 1951, realiza Sonhar é Fácil, segundo um argumento de Leão Penedo, numa aproximação da corrente neo-realista que se verificava na nossa literatura. Sonhar é Fácil «era um bom tema» ― escreverá Roberto Nobre ― «mas o desencontro entre o que Leão Penedo concebera e que se realizou foi deliberado, pois apenas se quis fazer uma comédia sem compromissos, aproveitando as situações, qualquer outra intenção explícita ou implícita. Se o argumento era de intuito neo-realista, já não o foi a adaptação e, muito menos, a realização de Queiroga, que, evitando embora o “popularuncho” nacional, parece ter visado fazer uma comédia amena, dum burguesismo socializado, à Frank Capra, dispondo, é claro, de meios bem mais precários».

Na direcção de actores, também Queiroga não soube (ou não quis) pedir a António Silva a composição correcta do personagem principal, «que devia ter um fundamento de humanização e de ternura que conseguisse comunicar-nos a soma de poesia que transcende a insensatez, mesmo o ridículo. Isto lhe pedia o argumento, mas não foi isso que lhe pediu o realizador e não foi isso que lhe deu o actor». (Roberto Nobre). Sonhar é Fácil foi o melhor filme de Queiroga e o limite das suas capacidades. Mais tarde fará umas Pupilas do Sr. Reitor (terceira versão), a cores, muito «folclóricas» e muitíssimo foto-novela, o que, diga-se de passagem, agradou muito ao S.N.I....

Outro nome que apareceu foi Fernando Garcia, com uma inverosímil história de pescadores, a que chamou Heróis do Mar. Cinco anos mais tarde, de mãos dadas com Domingos de Mascarenhas, que Lopes Ribeiro tinha trazido para a crítica cinematográfica, daria cabo de um saboroso conto de Eça de Queiroz: O Cerro dos Enforcados, transformando-o num pastelão à «film d’art» com a agravante (crime premeditado) de trair o humor e o sentido com que Eça o escreveu.

A fechar a década de quarenta, vem o grande estenerete de Leitão de Barros com Vendaval Maravilhoso, produção luso-brasileira que custou milhares de contos (o que para a época era coisa de espantar) e ficou a não valer um chavo. Leitão de Barros não soube tratar um assunto tão rico de conteúdo humano como era a biografia do grande poeta Castro Alves e o seu combate à escravatura, que era também um combate à sociedade do seu tempo. Leitão de Barros deixou-se conduzir, mais uma vez, pela tendência simplista para o superficial, o fácil e o pitoresco. Do drama dos escravos o Brasil não soube dar a imagem. O génio, o fogo, a inquietação de Castro Alves aparecem- nos, por sua vez, adocicados e diluídos num filme mal articulado, feito sem génio, sem fogo, sem imaginação. Vendaval Maravilhoso foi o suicídio cinematográfico de Leitão de Barros. O tema era grande de mais para ele: a figura de Castro Alves e a sociedade em que viveu, os problemas sociais do Brasil nos meados do século XIX, o contraste entre o ambiente romântico dos salões burgueses e a economia esclavagista, sobretudo a vida maravilhosa do poeta-tribuno, de quem Jorge Amado diria ter sido «o mais belo espectáculo de juventude e de génio que os céus da América presenciaram», eram matéria para cineasta de maior estatura e mais consciente das responsabilidades que assumia. Isto aponta, como exemplo alarmante, Manuel de Azevedo, em Perspectiva do Cinema Português (pags. 73 a 78)

Informação retirada de Breve História do Cinema Português (1896-1962) de Alves Costa

História do Cinema em Portugal - Do Teatro filmado de Lopes Ribeiro ao neo-realismo de Manuel Guimarães (1950-1956)


1. No ano de 1950 só se produziram dois filmes: O grande Elias, uma comédia muito chocha de Artur Duarte, e Frei Luís de Sousa, de António Lopes Ribeiro, segundo a peça de Almeida Garrett. Este filme teve um grande êxito comercial e, apesar das suas limitações, podia ter servido para provar que não é preciso lisonjear o mau-gosto que se atribui à maioria do público com historietas lorpas, com cantigas, touros ou fados, para o atrair e interessar. Na realidade, a procura de uma certa dignidade e um mínimo de aprumo na mise-en-scène foram factores que influenciaram favoravelmente um público que, durante cerca de dois meses, acorreu ao cinema para ver em imagens o drama de Garrett.

Frei Luís de Sousa ― filme não passou, no entanto, de teatro filmado. Só as duas dimensões do écran dão à peça de Garrett aspecto diferente da sua «clássica» representação no palco. E é, justamente, quando Lopes Ribeiro deita mão a alguns recursos que o cinema lhe oferecia que a sua obra fica desfavorecida (salvo na bela sequência final, na capela, a mais lograda de todo o filme). Incapaz de recriar Frei Luís de Sousa, Lopes Ribeiro serviu-se o melhor que pôde de um texto e de uma estrutura pré-existentes, apoiando-se neles como o faria no palco, sem grande imaginação e nos moldes tradicionais do teatro que então se praticava em Portugal (nem sempre ajudado pelos intérpretes). Na seguinte e última grande metragem de António Lopes Ribeiro, a tarefa era muito mais árdua pois tratava-se de transpor para a tela um romance: O primo Basílio (1959). Mais uma vez, nesta segunda adaptação do romance de Eça de Queirós, o cineasta não passou da (má) ilustração do enredo. Eça ficou de fora. Totalmente. Era preciso muito fôlego, muita aplicação e muito talento para se encontrar a equivalência cinematográfica do estilo (e do espírito) da obra literária, cuja riqueza está na minúcia da observação, no subtil recorte dos personagens, na mordente ironia e no peculiar humor da prosa queirosiana. Se a encenação ficou fora de tom (com cenas de aflitivo mau gosto), fora de tom ficou, também, a interpretação. Cada actor deve ter feito o que lhe pareceu melhor sem que o realizador os tenha feito aproximar correctamente das personagens. Tal como na primeira versão de George Pallu, estas personagens ficaram diminuídas e, por vezes, irreconhecíveis. Mesmo Cecília Guimarães ― actriz de indiscutível capacidade ― não conseguiu ultrapassar a sua antecessora. Ângela Pinto, com talento para dar e vender, foi uma Juliana muito mais próxima da figura criada por Eça, embora dirigida por um realizador estrangeiro que não teria da obra literária um conhecimento perfeito.

Entre estes dois filmes (1950 a 1959) muita água turva foi correndo pelas valetas. O cinema português desce a passos largos para uma degradação inquietante pelos caminhos mal calcetados do folhetim, do melodrama, da comédia torpe, mas o público ainda não lhe recusa assistência. Os cineastas que chegam nessa altura, a tentar a sua sorte no cinema, concorrem ainda mais para essa degradação. Augusto Fraga, com Sangue toureiro faz uma estreia bem pouco auspiciosa. Constantino Esteves aparece com um trôpego Comissário de Polícia. Armando Vieira Pinto ― que se revelara, de um dia para o outro, um dramaturgo de muito mérito, com Desencontro e Coristas ― mete-se na desastrosa aventura de dirigir o filme Eram duzentos irmãos. Ao lado dos que chegam, e cito apenas três exemplos, e dos que por cá vão andando sem avançar (Queiroga, Miranda, Henrique Campos), reaparece Brum do Canto com um longo e ambicioso Chaimite, de exaltação colonialista em lusitano jeito de «westem» americano. Por seu lado, Artur Duarte, desviando-se da comédia ligeira ― terreno em que não consegue renovar-se ― cavaca um filme odioso e moralizante: A garça e a serpente, «com um péssimo entrecho que promove um tremedal de desvergonha em nome das boas intenções.» (Roberto Nobre).


2. Artur Duarte é um caso ímpar no cinema português. Embora em tom menor. É o profissional de cinema que vem de mais longe. Operoso mas extremamente limitado, com vários grandes êxitos comerciais na sua longa carreira e uma constante actividade, se não é aqui é ali, nunca sofreu evolução. Nasceu em Lisboa em 1895. Cursou o Conservatório, o que parece ser coisa boa para as pessoas se conservarem sempre na mesma. Fez teatro entre 1917 e 1922. Foi para Berlim em 1924 tentar a sorte no cinema, onde fez pequenos papéis em mais de cinco dezenas de filmes. Diz que trabalhou ao lado de Fritz Lang (o que não se nota). Nos anos trinta andou por França e Espanha como assistente e director de produção. Assimilou pouco do cinema que deve ter visto, cá e lá fora. Entre 61 e 66 trabalhou no Brasil. Em Portugal, entrou em vários filmes como intérprete, desde o tempo do cinema mudo, e realizou catorze longas metragens e alguns filmes curtos. Sempre activo, empreende em 1976 a transposição para o cinema da peça de Ramada Curto A Recompensa. Festejou há tempos os seus rijos oitenta anos. E tem diversos projectos para o futuro, entre os quais um filme patriótico sobre Carvalho Araújo. Das voltas que o mundo deu, das voltas por que tem passado o cinema, nada fica a transparecer dos seus filmes. E, todavia, ele foi testemunha. Um bom realizador faria da sua vida um filme curioso.

Para Constantino Esteves, o que conta é o negócio. Percebe-se logo isso nos primeiros filmes que faz. E fez bastantes e bastante maus. Numa entrevista concedida ao «Diário de Lisboa» em 26-8-1968 define-se claramente: dirá que se especializou «em filmes de puro entretenimento» e que o cinema é para ele «uma actividade em que faz aquilo que as circunstâncias permitem», isto é: «filmes que possam ser classificados para maiores de 12 anos, sem complicações, para darem dinheiro na província e estarem ao gosto do rapaz do talho, da velhinha de imaginação simples, da empregadinha doméstica semi-analfabeta.» E acrescenta: «O grande público gosta (... ) A crítica torce o nariz. Eu rio-me. Encolho os ombros. Isto é uma reinação.» Tudo isto representa o mais descarado desrespeito por um público imaturo, tomando-o por atrasado mental. Constantino Esteves confunde divertimento e simplicidade temática com historietas estupidificantes, de mau gosto e mal atamancadas. Constantino Esteves disse ainda: «O meu Miudo da Bica salvou da ruína o produtor de Pássaros de Asas Cortadas, de Artur Ramos. Que se pode fazer mais?...» Toda a gente sabe o que se pode fazer, o que poderia ter-se feito. Mas... talvez conviesse que o público que gosta e se diverte com as fitas de Constantino Esteves não passasse jamais do seu estado de incultura e se mantivesse mesmo simplório, abúlico, ingénuo, quietinho... para não vir a desejar outra coisa (era a «política do espírito» do antigo regime) e, ao mesmo tempo, garantir o êxito de tantos Sarilhos de fraldas quantos outros tantos Esteves quisessem fazer.

Feita esta digressão, voltemos atrás, pois há que falar do aparecimento de Manuel Guimarães, que eu considero o caso mais dramático do cinema português. O seu nome surge em evidência, pela primeira vez, com o documentário O desterrado. A sua primeira obra, na longa metragem, será Saltimbancos, realizada em 1951.


3. Manuel Guimarães nasceu em 1915 em Vale Maior, onde viveu até aos três anos de idade. Seu pai era sócio-gerente da Fábrica de Papel do Prado, lugar que abandonaria por volta de 1918 para se dedicar à indústria de hotelaria. É assim que vem para o Porto, passando a viver na «Pensão dos Aliados», administrada por seu pai. Depois de concluído o 5.º ano dos liceus, Manuel Guimarães matricula-se na Escola de Belas-Artes do Porto. A sua primeira inclinação é a pintura, mas a sua grande paixão é o cinema. Em 1937 casou-se com D. Clarisse Fernandes Leal, companheira e colaboradora de toda a sua vida, de quem teve um à único filho: Dórdio Leal Guimarães. Antes de se profissionalizar no cinema foi pintor, caricaturista, ilustrador, decorador. No cinema, que não abandona nem nos momentos mais desesperados da sua vida, não escolhe lugares: foi assistente de realização, operador, repórter cinematográfico. Na falta de trabalho regressa às artes gráficas como paginador de jornais e revistas. Morrerá em 29 de Janeiro de 1975, vítima de um cancro quando terminava um filme em que punha bastantes esperanças, Cântico final, segundo o romance de Virgílio Ferreira. Realizou, por vezes em situações extremamente difíceis, oito longas metragens, quase todas a partir de obras literárias de Alves Redol, Bernardo Santareno, Fernando Namora, Vergílio Ferreira, Leão Penedo, assim como uma boa dezena de documentários correntes ou de encomenda.

Conheci Manuel Guimarães quando da apresentação de Saltimbancos (1951), a sua primeira longa metragem realizada quase em condições artesanais e com um orçamento muito esganado, do que o filme se ressentia visivelmente. Consciente das limitações do filme, ele me dizia ter sido a sua modesta contribuição para tirar o cinema português do charco em que ia metendo os pés e um esforço para integrar-se na corrente neo-realista que na altura perpassava pela nossa literatura. Depois disso, nunca deixei de estar atento à sua trajectória, quase comovente, feita de ilusões e derrotas, de anseios e frustrações. Manuel Guimarães era um homem simples, modesto, sincero, honesto, que não ignorava nem escondia as suas limitações, que aguentava com estoicismo os seus desaires, na esperança sempre adiada de um dia poder dar a medida total das suas capacidades. Levou-o a morte quando, por fim, poderiam surgir- lhe melhores perspectivas para uma carreira feita até ali de frustrações e de derrotas, de que a censura, castradora e repressiva, fora a maior culpada. A censura e a falta de apoio financeiro.

Em Nazaré , seu segundo filme de enredo, rodado em 1953, em que punha em foco a situação dos pescadores daquela praia, a censura desfigurou parte de uma obra que deliberadamente não se ficava pelo folclore, antes encarava a vida dos pescadores de um ponto de vista social. No filme seguinte, a censura iria abatê-lo. Manuel Guimarães tinha herdado uma pequena quantia: uns poucos centos de contos. Aplicou tudo nesse filme, com que sonhava há muito tempo. Até ao último vintém, mais alguns dinheiros que pediu emprestado. Assim fez Vidas sem rumo (1956), obra de um realismo poético que andaria muito próximo de um certo cinema neo-realista italiano, em que Guimarães pusera todo o seu amoroso empenho. A censura esfrangalhou a fita de tal sorte que tornou impossível a sua exibição. Tinha jogado tudo e perdeu tudo.
«Senti-me perdido, desorientado, vencido, desmoralizado ― disse-me ele um dia. ― Sofri uma enorme depressão, uma terrível angústia. E era tão aflitiva a minha situação económica que cheguei a passar fome...» Isto explica o estatelanço de A costureirinha da Sé.

Manuel Guimarães procurara assumir até ali uma atitude de dignidade artística e por esse caminho se esforçou, mal ou bem, por prosseguir. «Eu estava só», ― dirá ele numa entrevista concedida muitos anos mais tarde ― «lutando ferozmente contra uma engrenagem que apenas queria servir-se do cinema e não servi-lo. Aqueles ao lado de quem eu poderia estar, tinham desistido ou encontravam-se tão desiludidos que se tinham afastado. Ninguém sonha hoje os sacrifícios e o heroísmo que eram necessários para se fazer um filme com independência e sem apoios financeiros...» Homem que nunca vi metido nas tricas dos nosso meios cinematográficos, falava da sua obra com a maior das humildades: «Procurei, sempre que pude, fazer qualquer coisa de digno e válido dentro do cinema. Mas sei que os meus filmes nunca foram aquilo que eu desejava, nem sequer aquilo que poderiam ter sido se tivesse tido maiores disponibilidades financeiras. Estão mal acabados, mal estruturados, esteticamente indefinidos. De qualquer modo, fazer cinema era para mim a única razão de ser...

uma obsessão.» De Manuel Guimarães quase se pode dizer que morreu detrás de uma câmara de filmar. Na verdade, esta aqui um caso de paixão pelo cinema (paixão frustrada) de que pouca gente se terá apercebido. Poderia este cineasta, permanentemente derrotado (e derrotado à partida), ter sido pintor, ilustrador, decorador, cenógrafo; poderia ter-se voltado para o comércio, a publicidade, o jornalismo. O cinema tinha de ser a sua profissão, a sua vida, a razão da sua existência. Pelo cinema tudo sacrificou, na esperança, sempre renovada, de um dia poder fazer «o seu filme», em liberdade e com o tempo e os meios necessários. Cântico final, que deixou incompleto, não chegou a sê-lo.

O filme Vidas sem rumo acabou por vir a público, com vários remendos, no intento de salvar alguns tostões dos 550 000$00 que havia custado. Mas a censura tinha efectuado tais cortes que estava irremediavelmente destruído. Destruído um filme e destruído um homem sem imaginação para a iludir nem meios para lhe resistir. Persistente, não obstante as dificuldades e o complexo de inferioridade que o perseguia, nunca mais voltou às concessões da Costureirinha. Pelo contrário, em 1964, vemo-lo regressar com O crime da Aldeia Velha, segundo a peça de Bernardo Santareno «em que é evidente o sentido da expressão cinematográfica e a vontade de acertar e fazer obra digna e respeitável.» (F. Xavier Pacheco, in «Jornal de Notícias»).
Quando Guimarães realizou Nazaré, em 1953, o cinema português mergulhava no charco do mais baixo comercialismo. Já não era cinema nem coisa nenhuma. Foi então, já no ano de 1956, que reapareceu Manuel de Oliveira.

Foi então, também, face ao incremento e vitalidade do movimento cineclubista, que se procurou espartilhar os cineclubes (focos de consciencialização e de resistência) numa Federação controlada pelo S.N.I. (Decreto-Lei n.º 40572, de 16 de Abril de 1956), coisa em que os cineclubes nunca consentiram, embora sobre eles fossem aplicados todos os processos intimidatórios e perseguições (a que alguns não resistiram) directas ou subreptícias. A Federação ficou no papel, mas nunca conseguiu ser operante.

Nessa altura... entre os cineclubistas portugueses alguns traidores houve algumas vezes. O que, hoje, anda bastante esquecido... E, apesar do 25 de Abril de 74, esse decreto continua perigosamente inalterado e em vigor, por incúria dos próprios cineclubes, que mais se dispersam do que se entendem.



Informação retirada de Breve História do Cinema Português (1896-1962) de Alves Costa

História do Cinema em Portugal - O Regresso de Manuel de Oliveira



1. Afastado do cinema mas não divorciado dele, Manuel de Oliveira nunca pôs de lado a ideia de voltar. Resolve-se a fazê-lo com Angélica (uma história de sua autoria, localizada no Douro, que reflectia muito de si próprio, das suas inquietações e da impressão que lhe causara a II Grande Guerra Mundial). Era um projecto longamente amadurecido, para a concretização do qual requereu um subsídio do Fundo de Cinema. O subsídio foi-lhe negado e o projecto gorou-se. Entretanto, tomado de novo entusiasmo, vai à Alemanha (em 1955) estudar o emprego da cor, compra uma máquina de filmar e, no regresso ao Porto, inicia a rodagem de uma curta metragem sobre o Porto, que realiza sozinho e à sua própria custa. Ele mesmo maneja a câmara. Assim nasce O Pintor e a Cidade, que termina em, 1956.

O Pintor e a Cidade é menos um documentário sobre o Porto do que uma reflexão feita através da observação do pintor na deambulação pela cidade. Rico de sugestões, com uma cor muito bem trabalhada, com uma banda sonora sem efeitos acessórios, alguns dos seus momentos são particularmente significativos, como a opressiva sequência no sombrio bairro do Barredo (autêntica «descida aos infernos») que se opõe à sequência anterior, a das igrejas, que termina num movimento ascensional da câmara («subida aos céus» simbolizando a libertação do espírito). Outro desses momentos é a sequência das «passadeiras». Ao sinal do polícia, os peões passam ou esperam. Vão, alheios ao que os cerca, para o seu destino quotidiano. Esperam... passam. Esperam... passam. Na banda sonora, ao ruído ambiente sobrepõe-se o bater de passos cadenciados. Intercaladas, como relâmpagos, surgem as imagens de D. Pedro IV estendendo a Carta, do Infante apontando o mar, de Maria da Fonte empunhando a bandeira da Nação. O homem anónimo sempre conduzido por forças determinantes, por um comando: umas vezes é um destino histórico, outras vezes a luta por um ideal, outras ainda uma exaltação colectiva, as mais das vezes a luta pela vida. Alguém dá o sinal e aponta o caminho: o Infante... o Rei soldado... Maria da Fonte... um simples polícia sinaleiro.

Há ainda a ideia da incontável transformação acarretada pelo progresso (nas «explosões» de fachadas modernas rasgando a velha fisionomia da cidade), e a evocação saudosista do passado (na sequência dos jardins), pausa de instantes para se voltar a um outro dia sempre repetido de labuta (entrada dos operários para as fábricas, vindos da periferia e dos bairros de lata). Um mundo de coisas num filme de vinte e cinco minutos. Mas... como escreveu José-Augusto França: «o que um filme notável como O Pintor e a Cidade, com o seu sentido rítmico, o seu entendimento da cor, o seu poder, visual, a sua imaginação evocativa e a sua honestidade, representa estética e moralmente na apagada e vilíssima tristeza do nosso cinema ― c’os diabos, não é preciso dizê-lo!»

Não era preciso dizê-lo senão ao SNI, que atribuiu o «prémio Paz dos Reis», desse ano, para a melhor curta metragem, a um documentário de que ninguém se lembra, e a O Pintor e a Cidade deu a esmola do Prémio da fotografia... Mais inteligente, como era óbvio, foi o júri do Festival de Cork (festival internacional da curta metragem). Na sessão de encerramento, o documentarista britânico Basil Wright, presidente do júri, ao anunciar a atribuição de um prémio ao filme português, perante as 2500 pessoas que enchiam o cinema «Savoy», teve estas palavras: «O filme português O Pintor e a Cidade foi o filme mais interessante apresentado neste Festival. É uma obra cheia de originalidade, de imaginação, com magníficos exemplos de fotografia a cores, enquadramentos invulgares e uma montagem curiosa. A única razão porque não lhe atribuímos o primeiro prémio

não obstante o seu indiscutível mérito ― foi por não ter conseguido, em nossa opinião, tornar bem claras algumas das ideias que procura exprimir.»

Durante as filmagens de O Pintor e a Cidade, a visita ao bairro de lata que existiu, até há poucos anos, perto do Castelo do Queijo, sugeriu a Manuel de Oliveira a ideia para outro filme, desta vez um filme de enredo de fundo social (o dramático problema da habitação das classes menos favorecidas). A planificação que apresentou ao Fundo do Cinema também não foi aprovada. E, deste modo, O bairro de Xangai não se fez. (O problema das «ilhas» do Porto ninguém o resolvia e o problema da habitação para trabalhadores com baixos salários também não via solução. Mas falar deles num filme não era coisa que se permitisse... Mostrar aquela realidade social seria desmentir muita coisa. Mesmo nas entrelinhas de um filme que nada tinha de panfletário.) De então para cá, as coisas não mudaram sensivelmente, só que os cineastas já podem gritar: casas sim, barracas não!

Em 1959 Manuel de Oliveira termina o seu documentário de grande metragem, O Pão. Não obstante ter sido, a princípio, um filme de encomenda da Federação Nacional dos Industriais de Moagem, Manuel de Oliveira altera completamente o projecto proposto por essa entidade, garante total liberdade de criação e faz um filme em que as moagens modernas passam para um plano secundário. O que mais interessa a Manuel de Oliveira está noutro lado; o que ele na realidade quer mostrar é outra coisa. Filma milhares de metros de película. Ideias novas surgem-lhe a cada momento. A obra nasce na mesa de montagem, num trabalho minucioso vinte vezes recomeçado. Trata-se de dar alma às imagens, emprestar um sentido e um significado a cada sequência, investigar sobre a «linguagem» estética, para que a obra forme um todo significante, se erga e se equilibre.

Uma grande distância separa já Douro, faina fluvial deste filme, belo, original, superlotado de ideias e de valores simbólicos. A força e o ritmo palpitante de Douro deram a vez a uma serenidade reflectida e um pouco amarga, mas de onde emerge, uma vez mais, a dignificação do homem no esforço árduo de ganhar no trabalho, o pão de cada dia. O jovem de vinte anos, objectivo e polémico, deu lugar ao homem amadurecido que medita sobre os mistérios da vida e as contradições da condição humana, sem perder a ocasião de assumir, com extrema subtileza, uma posição crítica (e por vezes irónica) perante aquilo que observa.

Ao Pão seguiu-se Acto da Primavera, versão cinematográfica do «Auto da Paixão» que o povo Curalha representa todos os anos, a céu descoberto, pela Semana Santa. Reafirmo o que, há anos, escrevi noutro lugar: Acto da Primavera não é só uma obra de grande fôlego, ambiciosa, de concepção muito original e de invulgar beleza; é também um acto de coragem. Não de estranhar que esta interpretação de alguns passos do Evangelho, a partir da representação popular do «Auto da Paixão», tenha, à data da estreia, provocado as reacções mais diversas. O tempo foi consolidando o seu valor e uma modernidade que na altura surpreendeu e foi mal compreendida. Na realidade, a construção do filme era singular. Utilizando o próprio texto do Auto e algumas das suas passagens principais, filmando nos locais onde decorre normalmente a representação, conservando as barracas que na «encenação» popular representam o Templo, a casa de Pilatos, o palácio de Caifaz, etc., servindo-se dos mesmos «actores» e respeitando a sua declamação, Manuel de Oliveira passa da realidade para a representação, sem soluções de continuidade, para depois transcender a própria representação. Assim, coloca-nos como espectadores dos espectadores do Auto para, progressivamente, nos colocar dentro dele como participantes. E tudo isto pelos processos mais depurados, com cenas de uma beleza fascinante, transitando de uma óptica teatral para uma óptica puramente cinematográfica. Saudei, então, Acto da Primavera, como a grande obra-prima de Manuel de Oliveira. Saudei-a como a mais original e avançada película do nosso cinema, com o relógio adiantado sobre a cinematografia de qualquer outro país. E apontei-a como a primeira fita política portuguesa (no sentido mais lato da palavra), em que Manuel de Oliveira ousava dizer, por subtis linhas travessas, o que ninguém, entre nós, ousara dizer por linhas tortas ou direitas...

O Acto da Primavera foi recebido com bastantes reticências. Foi preciso esperar mais de dez anos para ser entendida a sua importância. E, uma vez mais, é do estrangeiro que vem a sua consagração. Apresentado no Festival Internacional do Filme, de Siena (Itália), um Festival particularmente voltado para o folclore (no sentido mais nobre e respeitável da palavra) e onde não pesam nem interesses comerciais nem influências políticas, Acto da Primavera foi galardoado, por unanimidade do júri, com o Grande Prémio (medalha de ouro e um milhão de liras). Posteriormente apresentado em Veneza, integrado numa retrospectiva de toda a obra de Manuel de Oliveira, promovida pela Organização da Bienal de Veneza de 1975, o crítico italiano Giovanni Grazzini escreveria: «Acto da Primavera faz-me lembrar Pasolini, pela simplicidade intensíssima de certos momentos e faz-me pensar em Straub pela orgânica estrutural do filme.» E, mais adiante, diria: «Oliveira, que se encontra entre os precursores do neo-realismo com o filme Aniki-Bóbó, revela em O Acto da Primavera um gosto apurado pela composição, um grande cuidado na cor, um grande saber na ordenação dos espaços e uma tristeza de fundo (estupendo é o lamento de Verónica) que exprime com perfeição as raízes portuguesas. (...) E também se pensa, andando muito para trás, na Pintura seiscentista.» Outro crítico, Morando Marondini, escreverá: «O itinerário de Oliveira revela não só um cineasta de admirável coerência formal, mas também um realizador que, pelas misteriosas vias da intuição, sabe, de filme para filme, antecipar ou pressentir as evoluções progressivas da linguagem cinematográfica.» Por sua vez, Ugo Casiraghi, em «L’Unità» (8-9-76) salienta «la grande originalità e la potenza di un artista che, nell’ampiezza della sua testiera e dei suoi riferimenti culturali, assomiglia soltanto a se stesso.»
Acto da Primavera (realizado em 1961-62) foi o primeiro filme de Manuel de Oliveira que recebeu um auxílio pelo Fundo do Cinema. A verba concedida (segundo declaração do SNI à revista «Plateia» ― n.º de 20-1-64) incluindo o custo de quatro cópias normais e uma cópia legendada em francês foi de 817 272$50, o que é uma quantia bem moderada em relação ao filme de que se trata (e a cores). Seria interessante perguntar ao produtor de O Evangelho segundo S. Mateus (filmado a negro e branco) quanto custou este filme de Pasolini, realizado no ano seguinte.

Até esta altura, Manuel de Oliveira foi uma figura isolada, um caso à parte dentro da nossa cinematografia. Muitos filmes tinham sido feitos em Portugal, com louvável esforço uns tantos, com merecimento e inegáveis qualidades uns tantos outros. O cinema de Manuel de Oliveira, porém, era o único verdadeiramente significante e original, sempre renovado e de profundas raízes portuguesas. Ao seu talento, à sua sinceridade, à sua coerência, à sua capacidade criadora, Manuel de Oliveira junta outra e rara qualidade: a humildade. E, no entanto, «pela virtude puramente cinematográfica das imagens e da linguagem, o poder criador da cor, o virtuosismo do som, as suas obras explodem sobre o écran com um vigor que apenas encontramos entre os maiores.» (Paulo Rocha).
Pelos anos adiante, Manuel de Oliveira prosseguirá sempre, com a mesma coerência e a mesma honestidade

direi mais: com a mesma juventude de espírito e a mesma invenção, uma via muito pessoal (que passará por A Caça, O Passado e o Presente e Benilde) «com a satisfação moral ― e cito outra vez um crítico italiano ― de não ter de envergonhar-se nem de um só dos seus fotogramas» (Callisto Cosullich, in Paese Sera de 9-9-76).

E, lá mais para a frente, Manuel de Oliveira já não estará tão só. Novos cineastas ― que por volta de 1962-66 começaram a experimentar a mão ― viriam lutar, também, por um cinema digno e culturalmente interveniente, resistindo à censura e ao desinteresse de um grande sector do público que tinha voltado as costas ao cinema nacional (sempre abafado na «colonização» do nosso mercado cinematográfico pelos «imperadores» da distribuição de filmes e a falta de uma protecção eficaz).

Informação retirada de Breve História do Cinema Português (1896-1962) de Alves Costa